Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Artigo

Imagine que você e sua família possuem um sítio há muitas décadas, adquirido pelo seu avô. Imagine agora que um estranho passa a rondar essa área, ameaça tirar você à força do local e destrói algumas plantações e cercas que você construiu.

Comissão Pastoral da Terra - Pernambuco

Imagine então que você ajuíza uma ação de usucapião para ver reconhecidos na Justiça os efeitos do longo tempo de posse que a sua família exerce nesse local e para pedir também, de forma mais imediata, proteção contra as investidas violentas que esse estranho está empreendendo ilegalmente contra a sua posse. 

Imagine ainda que você juntou ao processo documentos que comprovam esses longos anos de posse da sua família, e que esses mesmos documentos foram inclusive reconhecidos pelo órgão julgador. 

Imagine, no entanto, que, inexplicavelmente, esse mesmo órgão julgador não apenas não concede a você a proteção que você solicitou contra o estranho que está invadindo sua área, como também, absurdamente, concede a esse estranho invasor o direito de avançar sobre toda a sua área e de destruir tudo o que você construiu nela (inclusive sua casa e plantações), com o apoio da Polícia e do Judiciário. 

Em suma, você vai pedir socorro à "Justiça", e o que obtém é uma violação ainda maior que a que você já estava sofrendo, já que, antes, você podia ao menos buscar se defender contra o estranho invasor, e agora se depara também com o braço repressor do Estado contra si. 

Imagine agora saber que, juridicamente, tal decisão é completamente ilegal: mesmo na situação hipotética em que ao final do processo fosse entendido que você não conseguiu demonstrar que preencheu os requisitos necessários para se configurar a usucapião, em um processo como esse jamais poderia ser concedida ordem de reintegração de posse contra você, a favor da parte ré.

Isso se dá porque as ações de usucapião não possuem o efeito dúplice que as ações possessórias possuem. Aqui vamos abrir um parênteses para explicar o que são as ações possessórias e o que é o seu efeito dúplice.

Ações possessórias visam à proteção da posse exercida de fato sobre um imóvel, independentemente da existência de um título de propriedade. O que está em questão é a proteção da posse em si. Se eu ingresso com uma ação de reintegração de posse contra alguém, alegando que essa pessoa invadiu minha área, mas esse alguém rebate dizendo que ela é quem foi ofendida em sua posse e também demanda proteção possessória contra mim, pode o juiz, afinal, entender por negar a tutela possessória a mim e concedê-la à parte contrária. Este é o efeito dúplice das ações possessórias.
 

Voltando às ações de usucapião, nelas não há esse efeito dúplice. Isso quer dizer que, mesmo que ao final do processo a Justiça entenda que o autor da ação não conseguiu demonstrar que preencheu os requisitos necessários à configuração da usucapião e negue a ele o reconhecimento da aquisição do direito de propriedade, tal sentença não  confere à parte contrária o direito de propriedade sobre a área e, portanto, não pode ser utilizada pela parte vencedora como título executivo para reivindicar a área imediatamente para si. A parte vencedora precisaria ajuizar a sua própria ação judicial e nela formular tal pedido, para, depois de exercido o direito de defesa, a justiça decidir se lhe concede ou não o direito de tomar a área.

Em outras palavras, na ação de usucapião, se a parte autora perde, não há um efeito automático de conceder à parte ré, vencedora no processo, o direito de já tomar a área para si. E estamos falando de sentenças definitivas, proferidas pelo Judiciário depois de analisadas todas as provas disponíveis. 

Imagine então que tal decisão de reintegração de posse proferida contra você, no processo de usucapião que você moveu para ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre a área, se dá sob caráter provisório (que chamamos de “liminar”), após uma leitura superficial da prova documental disponível e antes que outras provas (como perícias, testemunhos etc.) possam ser produzidas.

Essa história que você acabou de imaginar está acontecendo com um agricultor que vive na zona da Mata Sul de Pernambuco, no município de Maraial. O seu nome é Severino Amaro Wanderley, mais conhecido localmente como Ramos. Ele procurou a Justiça para ver reconhecida a aquisição do direito de propriedade sobre o sítio onde a sua família vive e trabalha há mais de 90 anos e para afastar as violências e turbações que vinham sendo praticadas por um empresário pecuarista que queria tomar a área para si. O que obteve do Tribunal de Justiça de Pernambuco, no entanto, foi uma ABSURDA afronta ao seu direito de posse, de moradia e de acesso à justiça, na medida em que a decisão desencoraja as pessoas a buscarem seus direitos no Judiciário, pois, ao fazerem isso, podem estar indo ao encontro de um violador ainda maior.

E esta não foi a única ilegalidade presente na decisão contra Ramos. A decisão, cujo voto condutor é do Desembargador Stênio Neiva Coêlho, está repleta de contradições e inobservâncias do que determina a lei:

→ Segundo o §5.º do art. 5.º da Lei 6.969/81, é obrigatória a intimação do Ministério Público para participar de todos os atos processuais na ação de usucapião especial rural, na qualidade de fiscal da lei. No caso, porém, o Ministério Público não foi intimado para se manifestar no processo. Em face de tal ausência, a decisão deveria ser declarada nula.

→ Um princípio básico da jurisdição brasileira, expresso no art. 2.º do Código de Processo Civil, é o princípio da inércia do Poder Judiciário, que determina que o juízo não pode se mover por iniciativa própria, sem que haja provocação por qualquer uma das partes da relação processual. A decisão do Tribunal de Justiça também violou esse princípio na medida em que concedeu uma medida de reintegração de posse em favor da parte ré sem que esta sequer tenha formulado tal pedido.  

→ O §3.º do art. 300 do Código de Processo Civil determina que não deverá ser concedida tutela de urgência de natureza antecipada quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. No caso, a decisão do Tribunal de conceder a posse integral do sítio ao empresário invasor (que já vinha empreendendo destruições das benfeitorias do agricultor Ramos) acarretará a destruição total e irreversível das benfeitorias inseridas na gleba (plantações, habitações, casa de farinha, curral etc.), que garantem o seu direito de moradia e a sua subsistência.

→ A decisão questiona o tamanho da área pleiteada, mas admite o exercício da posse pelo agricultor de alguma área, mesmo que menor. No entanto, sob fundamento de não ter identificado elementos que demonstrem que ele exerce posse sobre toda a área pleiteada, mas apenas sobre uma parte dela, resolveu, contraditoriamente, desconsiderar qualquer posse exercida e conceder a tutela possessória integral ao empresário violador, deixando de resguardar e manter sob a posse de Ramos as suas plantações, a casa de farinha, o curral onde ficam os animais e até mesmo a casa onde o agricultor mora. 

→ O TJPE não assegurou sequer o direito de propriedade do agricultor sobre os seus bens, quando a defesa invocou o direito de ele ser indenizado pelas suas benfeitorias antes do cumprimento da sua remoção forçada do local. O Judiciário, sempre tão competente e ágil na proteção do direito de propriedade (expresso no art. 5.º, inciso XXII, da Constituição Federal), aplica esse direito seletivamente, a depender de quem o invoca.

O caso de Ramos demonstra o quanto o Judiciário brasileiro está longe de exercer o seu papel de fazer cumprir as leis e efetivar a justiça, sendo, na prática, um dos maiores violadores do direito à moradia e à terra quando se trata de gente empobrecida e vulnerabilizada. Imaginem quantos outros casos como esse existem Brasil adentro.  Quantos Severinos, Josés e Marias sofreram injustamente decisões completamente ilegais como esta.

Afinal de contas, quem controla o Poder Judiciário contra decisões abusivas e ilegais como essa?

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

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