Na Zona da Mata Sul de Pernambuco, numa grande propriedade rural entre os municípios de Jaqueira e Maraial, vivem cerca de 1.500 famílias de agricultores, que trabalhavam na Usina Frei Caneca – ou são filhos de antigos trabalhadores da usina –, que declarou falência há duas décadas. Os camponeses e suas famílias, que há mais de 50 anos moram e trabalham numa parte daquelas terras, tiveram suas vidas radicalmente afetadas quando, há cerca de cinco anos, uma empresa passou a administrar a massa falida da usina e alterou radicalmente a vida nas comunidades. Eles passaram a conviver com rondas armadas, ameaças de morte, tiroteios, prisões e destruição de suas plantações.
As 1.500 famílias, que somam mais de 5 mil pessoas, vivem em oito comunidades dentro daquelas terras. São as comunidades de Barro Branco, Caixa D’água, Engenho Jaqueira, Fervedouro, Guerra, Laranjeira, Várzea Velha e Batateira. Com exceção desta última, que fica dentro do município de Maraial, as demais estão dentro dos limites territoriais de Jaqueira. Pelo tempo em que vivem na propriedade, há décadas essas famílias têm direito às suas posses por usucapião, de acordo com o artigo 1.238 do Código Civil, que garante a propriedade às pessoas caso façam uso ininterrupto dessas posses há pelo menos 15 anos – ou 10 anos se nela tiverem estabelecido moradia. Mas a Justiça até hoje não fez o reconhecimento das posses.
Há cerca de cinco anos as terras da antiga usina Frei Caneca passaram a ser geridas pela empresa Negócio Imobiliária S/A, que depois mudaria de nome para Agropecuária Mata Sul Ltda. Além de criar gado na propriedade, a empresa também tem se utilizado – como denunciam os agricultores – de ameaças e violência para tentar expulsar as famílias das terras, contando com o apoio de aliados na política, nas forças de segurança e no Poder Judiciário.
O agricultor Almir Luiz da Silva, da comunidade do Barro Branco, foi uma das vítimas. “A empresa foi no meu sítio e destruiu minha lavoura, minhas bananas, pés de manga, cana de açúcar. Tive prejuízo, procurei a delegacia e fiz um boletim de ocorrência, mas não avança, não vemos resposta da Justiça”, lamenta. Almir tem 48 anos e vive com a esposa e quatro filhos – três crianças e um adolescente. “Recentemente houve um tiroteio aqui. Os seguranças da empresa chegaram atirando, ameaçando as mães de família e as crianças viram isso tudo”, diz o camponês. “Agora elas têm medo de qualquer moto ou carro na estrada, acordam de madrugada com medo até do latido dos cachorros. Estão assustadas”, lamenta.
As comunidades vêm denunciando os ataques, que se intensificaram no período de pandemia. Em janeiro de 2020, por exemplo, a empresa enviou um ônibus com funcionários à comunidade de Barro Branco. Os funcionários cortaram 10 mil pés de banana e, com bombas de agrotóxico nas costas, despejaram o veneno na terra, para garantir que as bananeiras não voltassem a crescer. Mas esse não foi o primeiro e nem o último ataque do tipo.
Em abril de 2020 a Agropecuária Mata Sul Ltda colocou seu helicóptero para despejar agrotóxico sobre plantações e moradias de algumas das comunidades, provocando tonturas, enjoos e dores de cabeça nos moradores – afetando crianças e bebês. Dias antes, em março de 2020, a mesma empresa tentou colocar uma cerca na área onde fica a fonte de água da região, o que foi impedido pelas comunidades. No mês de abril a Justiça visitou as comunidades, como etapa para a demarcação das terras que ficam com os agricultores e as que ficam com Agropecuária Mata Sul S/A.
Ainda assim, em maio, os empresários acionaram a Polícia Militar para cumprir uma ordem de reintegração de posse na comunidade do Fervedouro. Segundo uma líder comunitária, a ordem tinha data de duas semanas antes e tratava de outra comunidade. A comunidade conseguiu se manter. Em julho de 2020 um agricultor de 22 anos sofreu tentativa de assassinato por parte de vaqueiros que trabalham para a empresa. Ele levou sete tiros, ficou hospitalizado, mas sobreviveu. Há nas comunidades vários agricultores ameaçados de morte.
Num caso recente, de 22 de abril de 2021, os agricultores da comunidade do Barro Branco preparavam a terra para plantar milho e macaxeira, visando aproveitar as chuvas desse período do ano. Quando os funcionários da Agropecuária Mata Sul Ltda perceberam, foram à comunidade. “Eles já chegaram atirando para cima, as mulheres gritando e os seguranças xingando elas, enquanto os agricultores corriam de volta para a comunidade”, conta Geovani. “As mulheres sofreram ameaças, foram xingadas de tudo o que não presta. Sorte que os maridos delas não estavam presentes, porque se estivessem, não sei o que poderia ter acontecido. Eram donas de casa, agricultoras e as filhas dela. Foram esculhambadas de tudo pelos seguranças”, lembra Almir, com tristeza na voz.
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Geovani Leão, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), tem acompanhado de perto a situação das famílias. “Os agricultores viviam uma vida tranquila, pacífica. Mas quando essa empresa chegou, ela começa a praticar violências para impedir que as pessoas vivam nas comunidades. Toda vez que um agricultor começa a plantar algo, aparece algum segurança da empresa intimidando, ameaçando, proibindo as pessoas de plantarem, dizendo que aquela terra tem dono”, diz Geovani, destacando que o clima predominante nas comunidades passou a ser de medo.
Almir confirma. “A terra em que produzo hoje, foi terra que meus avós trabalhavam, meus pais trabalharam. Quem cuida dessa terra sou eu, para tirar o sustento da minha família. Mas nossa vida hoje não é mais como antes. A gente vive uma vida de terror aqui na comunidade. O que a gente quer é a nossa liberdade de volta, para poder plantar novamente no nosso pedaço de chão”, pede o agricultor.
Geovani destaca que as histórias se repetem muitas vezes. “Isso ocorre em todas as comunidades. Eles destroem e depois jogam veneno em cima para a lavoura não crescer. Os agricultores fazem o B.O. na delegacia, mas não traz resultado”, diz ele, lamentando a rotina de violência e perdas. “Muita coisa destruída, muito trabalhador ameaçado, mas a polícia não dá continuidade às investigações”, reclama.
Além do veneno, as fontes de água também são contaminadas pelo gado. “A empresa solta os gados perto das cacimbas, perto dos açudes, que são as fontes de água das famílias para consumo e trabalho doméstico. O gado urina, defeca ao redor da fonte, pisa dentro dessa água, isso tudo contamina a nossa água e pode provocar inúmeras doenças. Como as famílias podem se manter sem água?”, questiona.
E há ainda a vigilância com drones. “Toda vez que a empresa manda os funcionários, a comunidade reage para impedir. Mas eles sempre chegam com cachorros e drones sobrevoando as pessoas, para fazer fotos nossas. Eles mandam drones mesmo sem ter conflito, às vezes de noite, filmando as casas das famílias, como se estivessem nos vigiando, olhando o que estamos fazendo. Os conflitos dos últimos cinco anos já acumulam mais de 100 boletins de ocorrência nas delegacias de Maraial, Jaqueira e Palmares, mas nenhuma investigação foi aberta.
Do outro lado, no entanto, a Agropecuária Mata Sul Ltda tem tido algum êxito na tentativa de criminalizar os camponeses. Em 2020 quatro agricultores foram presos, sendo três deles alvos de uma megaoperação da polícia na comunidade do Fervedouro. Três foram acusados de tráfico de drogas e de armas e um outro foi acusado de tentativa de homicídio contra o gerente da empresa no município de Ribeirão.
Geovani Leão, da CPT, avalia que as acusações são falsas. “Funcionários da empresa fizeram um B.O. contra os trabalhadores, acusando de tráfico. Dois agricultores passaram um dia no 10º batalhão, em Palmares e foram liberados. O outro ficou detido por dois dias”, conta ele. “Houve busca e apreensão nas casas deles, não foi encontrada nenhuma grama de droga e nem de armas”, recorda. Já o agricultor acusado de tentativa de assassinato passou 32 dias no presídio de Palmares, também sem quaisquer provas contra ele.
As tentativas de criminalização continuam, apesar da mudança nos argumentos. A Agropecuária Mata Sul Ltda entrou com uma ação dizendo que 5 mil hectares onde fica a comunidade de Barro Branco são área de preservação ambiental do município de Jaqueira, se colocando como protetora da reserva e acusando os trabalhadores de invasão e crime ambiental. No fim de abril o juiz local concedeu liminar em favor da empresa e os funcionários da Agropecuária destruíram uma plantação de 30 mil pés de banana.
O advogado Bruno Ribeiro, que tem representado os agricultores na luta pela terra, considera toda a história absurda. “Quem desmatou toda a Mata Atlântica na zona da mata do estado foram as próprias usinas, não os agricultores”, conta Bruno. Na sexta-feira (7) o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) suspendeu a liminar e a reintegração de posse. “Apesar dos fracassos das tentativas da Agropecuária Mata Sul, cada movimento desse gera um ciclo de violências, prisões, tiros e ameaças de morte”, completa o advogado.
Bruno Ribeiro destaca que a liminar que autoriza a expulsão dos agricultores foi concedida pelo juiz Antônio Carlos dos Santos, titular da comarca de Ribeirão, mas que estava substituindo a juíza titular da comarca única de Jaqueira e Maraial. Foi também Antônio Carlos dos Santos que autorizou a prisão dos agricultores em julho de 2020, novamente enquanto tirava férias da juíza. “No município de Ribeirão ele é acusado por advogados e trabalhadores de ter atuação favorável a Usina Estreliana”, lembra o representante dos agricultores.
A empresa Agropecuária Mata Sul Ltda tem como acionista Guilherme Cavalcanti Petribú de Albuquerque Maranhão (ou apenas Guilherme Maranhão), proprietário da Usina Estreliana – também falida, no município de Ribeirão. Guilherme é também irmão do prefeito do município de Ribeirão, Marcello Petribú Maranhão (PSB). Após a falência da Estreliana, os proprietários criaram a empresa agropecuária, que assumiu as terras da Estreliana e também arrendou as terras da Usina Frei Caneca. As terras arrendadas pela empresa correspondem a nada menos que 60% de todo o território do município de Jaqueira.
O advogado Bruno Ribeiro destaca que as três áreas de conflitos por terra na região da Zona da Mata Sul do estado – em Catende e Maraial, além de Jaqueira – têm muitas similaridades. “Nos três casos as terras ficaram sob administração de empresas de negócios imobiliários, especuladoras. As três contrataram uma mesma empresa de segurança privada de Alagoas chamada Tróia – inclusive essa empresa não estava regularizada pela Polícia Federal para prestar serviços de segurança”, diz Ribeiro. “E chegaram com muita truculência, conexões com ex-policiais e ameaças às famílias que estão lá há décadas”, completa.
Os camponeses pedem que o poder público se faça presente e atue pelo fim do conflito, realizando a regularização fundiária. Denúncias foram feitas à Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e Ministério Público do Trabalho (MPT). Em protestos, já trancaram trechos das rodovias BR-101 e BR-232 e, no Recife, fecharam um trecho da avenida Conde da Boa Vista. Eles tentam chamar atenção do Governo do Estado. Conseguiram a realização de audiências online com órgãos do governo, mas ainda não houve resolução.
A Usina Frei Caneca e as dívidas milionárias
Antiga “Colônia Izabel”, as terras foram compradas no fim dos anos 1800 pelo Governo de Pernambuco, que fundou ali a Usina Frei Caneca, pouco depois arrendada ao deputado federal Leopoldo Lins, antigo político influente na Zona da Mata Sul. Em 1927 ele repassaria as terras ao senador Fábio da Silveira, que deixaria a propriedade aos herdeiros. A usina era composta por 16 propriedades agrícolas e produzia quase 2 mil litros de álcool por dia, além de ter em suas terras 27 quilômetros de ferrovias da antiga Great Western, que transportava o produto direto para o Porto do Recife.
Ao longo das décadas, principalmente a partir da segunda metade dos anos 1900, a Usina Frei Caneca teve três nomes diferentes. Somados, acumulam dívidas de que se aproximam dos R$350 milhões, valor superior ao próprio patrimônio da usina. As pendências são tanto com a Fazenda de Pernambuco e como com a União. A usina figura também entre os 100 maiores devedores da Justiça do Trabalho de Pernambuco, de acordo com o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT) e tem mais de 150 processos trabalhistas já transitados em julgado, que deveriam estar sendo executados, de acordo com o Tribunal Superior do Trabalho.
Caminhos apontados
O advogado Bruno Ribeiro, que defende os agricultores, lembra que a execução fiscal por parte do Governo do Estado ou do Governo Federal seria uma importante medida para normalizar a situação na região. “Essas dívidas milionárias deveriam ser pagas ao poder público em terras”, diz ele. As dívidas trabalhistas da Usina Frei Caneca são referentes a impostos, como FGTS, que dizem respeito a direitos dos trabalhadores à aposentadoria, por exemplo, mas que a empresa não cumpriu com suas obrigações.
“São sentenças trabalhistas já transitadas em julgado, reconhecendo direitos aos antigos trabalhadores, sejam camponeses, sejam trabalhadores da indústria da cana. São débitos que nunca foram pagos”, diz o advogado Bruno Ribeiro. “Até houve acordos na Justiça do Trabalho para que parte dessas dívidas fossem pagas com terras, mas isso nunca foi executado, as terras nunca foram demarcadas e destinadas aos agricultores. Os trabalhadores são credores, têm crédito a receber, mas não recebem”, completa o jurista.
Os débitos trabalhistas, na avaliação do advogado, reforçam o argumento de que aquele imóvel de propriedade da usina já não cumpre com sua função social e, de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, deveria sofrer desapropriação para fins de reforma agrária. “Na minha avaliação, a existência desse débito trabalhista entra como mais um item que caracteriza o não-cumprimento da função social da propriedade. É uma terra que não tem mais, não gera emprego e pertencente a uma empresa que deve a centenas de trabalhadores”, diz ele.
A desapropriação caberia ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Toda aquela área deveria ser desapropriada. Mas com esse quadro de omissão do Incra, não podemos contar com o órgão para cumprir as regras constitucionais”, lamenta Ribeiro, destacando que o Incra sequer visitou o local nos últimos anos.
Outra solução seria a Justiça Estadual (TJPE) reconhecer a posse antiga dos agricultores e o seu direito por usucapião. “Há décadas esses agricultores alimentam a região, já que o excedente da produção deles é comercializado nas feiras das cidades. Eles só querem voltar a ter paz e ter seus direitos respeitados. Nunca foram respeitados pela Usina Frei Caneca, nem quando trabalhavam nela”, diz o advogado.
Mediação
A iniciativa de pressionar pela maior presença do poder público partiu das organizações da sociedade civil, como CPT, MST, Fetape, ASA e Centro Sabiá. Foi criado um comitê com 23 movimentos de trabalhadores do campo, sindicatos rurais e ONGs para adotar medidas visando conter as ameaças sobre a população do campo em Pernambuco. “Esses casos das comunidades da antiga Usina Frei Caneca geraram vários documentos do comitê para o Governo do Estado”, diz Bruno Ribeiro.
Almir Luiz, agricultor da comunidade do Barro Branco, reforça que os camponeses querem que o poder público “olhe com carinho” a situação deles. “A gente quer uma resposta da Justiça. Queremos liberdade de volta, trabalhar, cultivar, produzir para tirar nosso alimento e o sustento da nossa família”, diz ele, denunciando ainda que por parte do poder público municipal – tanto a prefeitura como a câmara de vereadores – “a ajuda é zero”. “Não ajudam quem precisa. Vivemos à mercê. Se não fossem essas entidades que estão nos defendendo, estaríamos desacobertados”, diz o agricultor.
O advogado Bruno Ribeiro destaca a condução, nos últimos meses, dada pelo TJPE via Núcleo de Mediação de Conflitos. “O TJPE nunca havia feito esse movimento envolvendo um caso do campo, de sentar com as partes para tentar uma saída consensual desse litígio. Não é fácil esse tipo de composição, mas estamos tentando”, diz ele.
Por parte do Governo do Estado, algumas coisas têm avançado lentamente. A secretaria de Justiça e Direitos Humanos, na pessoa de Pedro Eurico, tem realizado reuniões online com as partes envolvidas no conflito. A secretaria de Desenvolvimento Agrário, encabeçada por Claudiano Martins Filho, também tem acompanhado o caso e se comprometeu a enviar em breve uma equipe do Instituto de Terras e Reforma Agrária (Iterpe) à região para iniciar a medição das terras dos trabalhadores.
Para Geovani, a atuação do poder público tem sido insuficiente. “Ainda não é o que desejamos, visto que a Usina Frei Caneca é devedora de milhões aos cofres do Estado. Queremos que o Governo cobre a dívida da Usina. Se não pagarem, o Estado desapropria essas terras e deixa nas mãos dos agricultores”, diz Geovani Leão, da CPT.
As comunidades também esperam uma presença maior da Secretaria de Defesa Social, garantindo segurança às comunidades. “A segurança precisa melhorar, porque já são mais de 100 boletins de ocorrência, mas os ‘seguranças’ continuam circulando armados. Precisamos saber se essas pessoas têm autorização legal para portar armas, porque nem isso foi feito. E mesmo que tenham, não podem usar do porte para ameaçar a vida de pessoas. É completamente ilegal”, finaliza o advogado.
O Brasil de Fato Pernambuco entrou em contato com a Secretaria de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco, com o Incra, com a Defensoria Pública de Pernambuco, com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e com a Procuradoria Regional do Trabalho (Ministério Público do Trabalho em Pernambuco), perguntando sobre as medidas que os órgãos têm adotado para mediar os conflitos. Até o fechamento dessa matéria os órgãos ainda não haviam respondido.
Edição: Vanessa Gonzaga