Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Exclusão de quilombolas, indígenas e outras populações tradicionais das políticas públicas. Facilitação do acesso a armas por meio de decretos. Perseguição a ONGs e ativistas contrários ao governo. Essas são algumas das 32 violações de direitos humanos praticadas pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) listadas no relatório “1000 Dias sem Direitos”, organizado pela Anistia Internacional. 

O documento, divulgado no ano passado, traz à memória violações que organizações ouvidas pela Repórter Brasil esperam que sejam investigadas – e que haja a responsabilização devida. Mais do que isso, essas entidades expressam como a derrota de Bolsonaro nas urnas e a chegada de Lula (PT) traz algum alívio para quem atua na defesa dos direitos humanos. 

Há muitas demandas represadas na área de direitos humanos, segundo as organizações ouvidas. Entre as prioritárias está a reforma agrária: “Ela é a principal forma de garantia de direitos humanos, possibilitando espaço para reprodução de uma vida digna, alimento, acesso à educação e proteção ambiental”, diz Andréia Silvério da Comissão Pastoral da Terra (Foto: Álvaro Rezende/Repórter Brasil)

No entanto, Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) projetam quatro anos desafiadores para as pauta dos direitos humanos no próximo governo – sobretudo no contexto do campo. Entre os desafios estão a alta demanda por investimentos para reconstrução de estruturas, o sucateamento de políticas públicas e expectativa de baixo orçamento. Tudo isso diante de uma conjuntura política mais conservadora do que a que foi encontrada pelo PT em gestões anteriores. 

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Para Marcelo Chalréo, conselheiro do CNDH, Lula terá de lidar com uma direita mais consolidada e com uma parte do Congresso Nacional que não deverá apoiar suas iniciativas. “Também não temos ventos favoráveis no cenário internacional, com uma série de conflitos e restrições comerciais”.

Chalréo também alerta para o fato de Bolsonaro estar entregando uma administração completamente dilapidada. “Os órgão públicos e as agências de Estado, que já vinham passando por dificuldades, foram destroçadas, assim como as agendas mais próximas dos movimentos sociais, quilombolas e indígenas, como nos casos da Fundação Palmares, do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e da Funai [Fundação Nacional do Índio]. A Previdência Social também está quebrada. A situação da máquina pública é extremamente ruim”. 

Apesar da quantidade e complexidade dos problemas deixados pela extrema-direita, as cinco organizações ligadas a direitos humanos ouvidas pela reportagem elencaram as pautas que consideram prioritárias para que o governo Lula coloque em prática uma agenda em prol da reconstrução do país:

1. Promoção da reforma agrária

Em seu mandato, Jair Bolsonaro substituiu a reforma agrária pela entrega de títulos a assentados. Praticamente sem desapropriar terras para distribuí-las aos trabalhadores rurais, seu governo promoveu uma onda de emissões de títulos de propriedade privada para quem já tinha posse de suas terras, por meio do Incra. Na prática, a política estimulou a venda de lotes pelos assentados e o consequente retorno das terras para o latifúndio. Isso também acabou colocando terras públicas no mercado – o que contraria a essência da reforma agrária. 

“Essa medida ainda retira do Estado a responsabilidade pela garantia de políticas públicas que possibilitem a permanência das famílias na terra. À medida que as titulações ocorrem individualmente, o governo se exime da responsabilidade de garantir infraestrutura para essas populações”, alerta Andréia Silvério, que integra a coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

“A reforma agrária é uma questão central de justiça social, para corrigir desigualdades históricas e estruturantes da sociedade brasileira. Não é porque ela foi paralisada no governo Bolsonaro que não existe demanda de famílias em processos coletivos de luta pela terra para serem assentados”, afirma Silvério, para quem a estagnação de ações públicas nesse sentido acabou por acumular problemas para o próximo governo. “Há um represamento da demanda. Na nossa avaliação, a reforma agrária é a principal forma de garantia de direitos humanos, possibilitando espaço para reprodução de uma vida digna, alimento, acesso à educação e proteção ambiental.” 

2. ‘Revogaço’ de decretos de armas

Os movimentos sociais analisam que um “revogaço” dos decretos de armas de Bolsonaro, que facilita o direito à posse de armas de fogo, só depende da vontade política do grupo político de Lula. Em entrevistas, Flávio Dino (PSB), cotado para assumir o Ministério da Justiça no próximo governo, se mostrou favorável ao desarmamento. 

Combater a violência no campo deve estar na agenda prioritária do novo governo: organizações se preocupam, por exemplo, com decretos que ampliaram o acesse a armas entre proprietários de terra; na foto, Memorial em homenagem à freira Dorothy Stang, morta em Anapu (PA), com cruzes representando os trabalhadores rurais assassinados e ameaçados (Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace)

As organizações também demonstram preocupação com outro decreto assinado por Bolsonaro, em maio de 2019, que permite que o proprietário rural com posse de arma de fogo utilize o objeto em todo o perímetro da propriedade, bem como que os colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) possam ir de casa ao local de tiro com a arma carregada. “Do golpe de 2016 para cá, aumentou em 350% o número de assassinatos de lideranças quilombolas. Houve uma autorização implícita e até explícita para matar. As comunidades estão sofrendo muito assédio dos ditos ‘cidadãos de bem’”, afirma Givânia Silva. 

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A representante da Conaq também relaciona as mortes à paralisação da regularização dos territórios quilombolas. “O IBGE estimou em 2019 que existem cerca de 5.972 comunidades quilombolas no Brasil, a Conaq diz que somos 6,5 mil comunidades e o Estado só reconhece 4 mil, embora a titulação definitiva esteja em torno de 300 comunidades. Há um passivo altíssimo na regulação dos territórios”.

3. Educação no campo

Responsável pela formação de 192 mil pessoas desde 2015, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) é fundamental para a formação – da alfabetização ao ensino superior – de camponeses e quilombolas. No entanto, Bolsonaro extinguiu a coordenação responsável pelo programa, inviabilizando sua continuidade. “O Pronera é um instrumento que facilita a permanência dessas pessoas na terra”, afirma Silvério, da CPT. 

“O Brasil é um país que mata sua força de trabalho futura, sua juventude. Para reverter isso, temos a expectativa de que haja garantia de qualificação para o jovem do campo, para que ele ingresse no mercado de trabalho”, afirma a educadora Givânia Maria da Silva, representante da Conaq. O Pronera é uma maneira para que o jovem permaneça no quilombo, já que atualmente menos de 2% dos quilombos brasileiros contam com escolas de Ensino Médio.   

4. Programa Nacional de Direitos Humanos

Em 2009, Lula sancionou o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), que reúne diretrizes para atuação do poder público na área dos direitos humanos, considerando aspectos como a universalização dos direitos em contexto de desigualdades, segurança pública e acesso à Justiça, combate à violência, educação e cultura em direitos humanos, bem como direito à memória e à verdade. 

Defensores de direitos humanos estão cientes dos desafios para implementar uma agenda positiva na área, por conta de questões como ‘órgãos públicos a agências do governo destroçados’; na foto, área ocupada pela Liga dos Camponeses Pobres a 130 km de Porto Velho, alvo de disputadas judiciais e violência (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

No entanto, de acordo com Chalréo, da CNDH, o programa não saiu do papel apesar de seu escopo fundamental: “É um documento que abordar questões relacionadas às mulheres, negros, população LGBTQUIA+, juventude e povos indígenas. É preciso retomar esse debate”. Ele reconhece o grande volume de encaminhamentos inclusos no programa e as dificuldades para sua execução total, mas afirma que, na prática, a escolha do que será priorizado depende da pressão dos movimentos sociais. “A questão de prioridade num governo quase sem capacidade de investimento também passa por algumas escolhas políticas. O Estado vai continuar pagando essa monstruosidade de juros aos banqueiros?”

A longo prazo, Chalréo acredita que o país precisa retomar seu processo de industrialização para ter recursos para investir nas pautas de direitos humanos. “Há problemas em todas as frentes. E para contar com uma política sólida de sustentação do país, é preciso de uma política industrial. O Brasil tem que voltar a ser um parque industrial sólido para a América Latina, para que a próxima geração tenha mais condições de avançar na área social”, afirma.

5. Promoção da agricultura sustentável 

Segundo acompanhamento realizado pela “Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos pela Vida”, mais de 2 mil tipos de agrotóxicos foram liberados durante os quatro anos de Governo Bolsonaro. O dado contrasta com a escassez de recursos públicos para saúde, educação, ciência e tecnologia, bem como o esvaziamento das políticas públicas para a produção de orgânicos e agroecológicos e com o desmonte dos órgãos e da legislação ambiental. É nesse contexto que a dirigente nacional do setor de gênero no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Lucinéia Freitas, chama atenção para a necessidade de fortalecimento de iniciativas em prol de uma agricultura sustentável. “Para isso, é necessário revogar os decretos de liberação de todos esses agrotóxicos e também reequipar o Ibama, a Funai e o Instituto Chico Mendes”, comenta. 

No MST, a temática costuma ser trabalhada a partir do debate da agroecologia, em iniciativas como o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, um espaço de articulação, formação, organização política e de amplo debate, constituído com objetivo de reafirmar a Reforma Agrária Popular, a defesa dos territórios e a soberania alimentar. “É uma campanha que a gente vem construindo por entender que há uma relação muito direta entre os modos de produção do latifúndio e os problemas ambientais que a gente vivencia. A gente faz a defesa da agroecologia que de fato tenha base no cuidado com a natureza e que garanta a soberania dos povos na produção e qualidade nutricional”, conclui Freitas. 

 

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