Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Os governos Collor, FHC e Lula integraram e entregaram o país ao neoliberalismo, ou seja, aos interesses ligados ao processo de mundialização do capital financeiro. Durante esses governos, a agricultura foi gradativamente integrada à lógica das grandes companhias transnacionais que dominam as principais cadeias do agronegócio global. Foram abertas as portas da agropecuária nacional ao capital internacional, consolidando-se o processo de concentração, centralização e desnacionalização do capital.

Por José Juliano de Carvalho Filho

Nos anos 50 e início dos 60, o "debate clássico" sobre a questão agrária brasileira foi marcado por muita controvérsia, em tempos das Reformas de Base. Discutia-se a sociedade brasileira, suas origens e características, bem como o seu futuro e soluções para a crise. As posições em conflito eram muitas e cobriam todo o espectro político, variando desde interpretações marxistas ortodoxas e estruturalistas até a posição conservadora e liberal, baseada na teoria econômica neoclássica. Com o golpe militar em 1964, prevaleceu a última posição e o país passou por um longo tempo de ditadura. O debate foi sufocado e as organizações de trabalhadores foram reprimidas. A política agrícola implantada resultou na chamada "modernização conservadora", com mudanças na base técnica e integração aos mercados internacionais.

A modernização capitalista induzida pelo Estado também provocou um agravamento das desigualdades na distribuição das terras, da renda e do poder. Houve forte processo de expulsão da população rural da "área modernizada" para as cidades e para outras áreas rurais e generalização da violência e do conflito agrário. Os impactos ambientais negativos conseqüentes desse processo foram notáveis e diversificados.

Na segunda metade da década de 70, a discussão reapareceu com a preocupação de explicar a natureza dessas transformações. Contrariando algumas hipóteses, o capital dominara as atividades econômicas no meio rural sem alteração da estrutura agrária.

Naqueles tempos, muitos "decretaram" a caducidade da questão agrária e a inadequação da reforma agrária, prevendo o desaparecimento dos camponeses, que se transformariam em operários ou pequenos empresários. Essa linha de interpretação permanece até hoje, predominando a visão "agronegocista-neoliberal".

As implicações negativas do processo de modernização capitalista no campo, por si só, justificariam a volta da questão agrária ao debate nacional. Todavia, quem de fato o fez foram os sem-terra, que reivindicam o acesso à terra e lutam por direitos sociais. Os camponeses se organizaram, por exemplo, no Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e confrontaram a estrutura agrária, colocando a questão agrária na pauta política nacional.

A luta tem sido dura e desigual para os trabalhadores. Enfrentam os chamados ruralistas, sempre muito influentes no poder, herdeiros da velha direita latifundiária e truculenta, hoje associada ao capital transnacional. É o chamado agronegócio, eufemismo para o atual modelo de desenvolvimento da agropecuária capitalista. Os heróis do presidente aí atuam.

Política oficial é ineficaz para assentados e sem-terra, inócua ao velho latifúndio e funcional aos interesses do agronegócio

A prevalência desse modelo, na ausência de um projeto de nação e de controles públicos adequados, define a questão agrária atual. A nova questão agrária é caracterizada pelo forte agravamento dos velhos efeitos do avanço do capital em detrimento dos trabalhadores e camponeses. As análises das principais cadeias produtivas existentes no país - soja, eucalipto e cana-de-açúcar - comprovam o fato.

Os resultados de diversas pesquisas sobre o setor sucroalcooleiro mostram as seguintes evidências: aumento da concentração fundiária; perda de biodiversidade; redução das áreas de policultura, avanço da pecuária e da cana-de-açúcar na Amazônia; poluição das águas e da atmosfera.

Além disso, tem o agravamento da exploração da mão de obra; várias situações de trabalho escravo; mortes por exaustão nos canaviais paulistas; redução do emprego agrícola; aumento da morbidade; prejuízo para a segurança alimentar; degradação das condições de saúde e ineficácia das políticas públicas.

Outros fenômenos são a desnacionalização das terras; presença do capital especulativo internacional; acirramento do conflito agrário; organização de milícias armadas a serviço de um latifúndio aliado ao capital nacional e internacional, como no caso da empresa suíça Syngenta Seeds, que foi palco do assassinato de uma liderança do MST no Paraná.

A inoperância do Estado quanto à regulação do agronegócio em áreas de reforma agrária possibilita a subordinação dos assentamentos à lógica econômica das usinas de açúcar e álcool, que destrói o que foi construído pelos trabalhadores. Isso é conseqüência da decisão de governo de integrar o país, de forma subordinada, à nova divisão internacional do trabalho capitalista. Esta opção significa especialização em produtos primários de baixo valor agregado e implica sujeitar o meio rural brasileiro aos interesses de poucas e enormes companhias transnacionais.

A política agrária oficial tem apenas cumprido o seu papel subalterno à política econômica, mostrando-se tímida e ineficaz para s sem-terra e assentados de reforma agrária, inócua ao velho latifúndio e funcional aos interesses do agronegócio. O Poder Judiciário não destoa e, em geral, pende para proteção dos mais ricos e poderosos, condenando os pobres e criminalizando suas lideranças.

Do lado do capital, não existe no campo questão a resolver que lhe dificulte a acumulação. Ao contrário, para as populações exploradas, a questão existe. No mundo gerado pelo capitalismo financeiro, marcadamente aqui na periferia subordinada do sistema global, não há lugar para a grande maioria dessas pessoas - são consideradas meras sobras do progresso capitalista. Para elas, no entanto, a questão agrária é real e significa sobrevivência e, por isso, resistem.

Jornal Valor, 22/02/08

* José Juliano de Carvalho Filho é economista, professor aposentado da FEA-USP. É diretor da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e integrou a equipe que elaborou a proposta do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária para o governo Lula.

 

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