Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

De olho aberto para não virar escravo

Há anos Maranhão, Tocantins, Piauí, Ceará, Minas Gerais são percorridos por empreiteiros do Pará e Mato Grosso. Estes empreiteiros são conhecidos como gatos. Eles caçam trabalhadores rurais para derrubadas de mata, roço de juquira, limpeza de pasto, aceiro e conserto de cerca. Chegam com promessas bonitas de emprego e salário mas depois, quando os peões entram nas fazendas, encontram ameaça, espancamento e trabalho escravo. Milhares de pessoas sofreram muito nos últimos anos e dezenas, ao tentarem sair do cativeiro, foram torturadas e até mortas.


Escravidão por dívida e trabalho forçado não são resquícios do passado em fazendas remotas e atrasadas. Encontram-se nos desmatamentos, na produção de carvão, nos seringais e garimpos, em projetos com incentivos fiscais de bancos e multinacionais. São consequências de uma receita de modernização e da limitada democracia brasileira”. (Alison Sutton, Trabalho Escravo, 1994)

 

 


Nos últimos anos, nós os brasileiros, temos sido submetidos à vergonha de ver o Brasil várias vezes interpelado por instâncias internacionais de Justiça pela existência do trabalho escravo. Vergonha não pela interpelação em si, mas porque elas significam não só a existência como a continuidade deste crime de lesa-humanidade.” (Fórum Permanente contra a Violência no Campo)

1. a CPT e o trabalho escravo no Brasil

A Comissão Pastoral da Terra se preocupa há anos com a permanência do trabalho escravo no Brasil. A primeira denúncia conhecida sobre conceito moderno de trabalho escravo é de 1972, realizada por Dom Pedro Casaldaliga, de acordo com o critério divida impagável. 

No século 19 já havia situações de trabalho escravo - trabalho de imigrantes - por divida de viagem e alimentação. Na Alemanha, na época, houve um movimento para a libertação dos trabalhadores. E possível que tenha havido outras denuncias no âmbito da Igreja. No Brasil, existem dados de trabalho forçado com os soldados da borracha (trabalho obrigatório), onde muita gente morreu - mais de 40 mil - promovido também pelo governo. Nas décadas de 70-80, tem-se noticias de trabalho forcado em fazendas na Amazônia. Em 73, quando o governo militar fornece subsídios a grandes empresas da Amazônia, e estimado em 100 mil o numero de trabalhadores escravizados, por ano, ate a década de 80. Em 77, vem de Conceição do Araguaia a 1a. noticia de trabalho escravo em fazendas, dada pelos próprios trabalhadores fugitivos dessa situação. Em 74, teria havido na fazenda Bradesco - sul do Para, a queima de 60 peões. Os trabalhadores contratados fora do estado eram levados de avião para tornar a fuga mais difícil. Normalmente, a contratação e o aliciamento se dão no Piauí, Rio Grande do Sul, Paraná, Maranhão, Espirito Santo, e os trabalhadores só se dão conta da situação de divida de viagem, cantina, ferramentas, quando chegam ao local.

O que fizemos? A primeira grande denúncia foi em 1984, o caso da fazenda da Vale do Rio Cristalino, da Volkswagen, no Sul do Pará. Os peões conseguiram escapar a pé da fazenda e foram parar em São Félix do Araguaia. Houve mobilização e a idéia de flagrar os responsáveis foi frustrada. Na época, o governador do Para era Jader Barbalho. Não se conseguiu fazer o flagrante, então convocou-se a imprensa nacional e internacional e se fez a denuncia. Havia indícios de que eram 600 trabalhadores. Mais tarde, uma matéria publicada na Alemanha afirmou que havia 800 trabalhadores escravizados.

É muito difícil conseguir informações exatas sobre o número de peões escravizados. O peão fala, no máximo, do grupo que foi com ele, do local onde estava. Nem sempre tem contato com o todo. O gato geralmente tem outros grupos. Quem sabe da realidade são os gerentes ou proprietários que sempre negam.


Nos anos 90, o Fórum contra a Violência no Campo tem sido um veiculo forte de denúncia e debate do problema. Ele é composto de entidades da Sociedade Civil, dentro das quais a CPT, e governamentais: Ministério Público Federal, Ministério do Trabalho, INCRA entre outras pelas denúncias sucessivas realizadas, diretamente pela CPT ou através do Fórum, as autoridades começaram a se preocupar com a questão:

Abril de 1993: o então presidente da CPT, Dom Augusto Alves da Rocha, denuncia em audiência com o ministro do Trabalho, Valter Barelli e ao Procurador Geral do Trabalho. 
Anos 92 e 93: denúncias em instâncias internacionais da ONU, OIT, Parlamento Europeu e OEA. A CPT e representada pelo Pe. Ricardo Rezende e Dr. Marcelo Lavénère, então presidente da OAB.

11.04.94 - Darci Frigo, representando a CPT, faz pronunciamento na 19ª sessão da Subcomissão da ONU - grupo de trabalho sobre a escravidão contemporânea.

Com isso conseguimos alguns instrumentos legais e institucionais para combater melhor o trabalho escravo:

24.03.94 - Instrução normativa do Ministério do Trabalho: dispondo sobre os procedimentos da inspeção do trabalho na zona rural.

1995: criação do GERTRAF, grupo executivo de repressão ao trabalho forçado, e implantação do Grupo Móvel de Fiscalização, pela SEFIT, seção de fiscalização do Ministério do trabalho 
final de 1998: a lei sobre o trabalho escravo, em tramitação há 2 anos, é votada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República em 28.11. 98.

O números levantados pela CPT chegaram a 26.000 em 1995 enquanto que em 1991, o total apurado atingia 4.883. Difícil de fazer comparações rigorosas de um ano para o outro já que, até entrar em ação o Grupo Móvel, em 96, os únicos números disponíveis são os números fornecidos por informantes, fugitivos ou, com a margem de erro que essa informação comporta: a mais como a menos. O peão escravizado só tem conhecimento da frente de trabalho onde foi contratado.

A partir de 1996 os números contabilizados se restringem aos trabalhadores efetivamente resgatados em operações de flagrante realizadas pelos fiscais do Ministério do Trabalho. Das 4.883 vítimas contabilizadas em 1995, 821 foram encontradas no Pará (86 no Maranhão, 90 no Mato Grosso). Já em 1996 o número apurado no Pará, a partir dos relatórios do Ministério do Trabalho, foi de 674, em 1997, de 473 e em 98 foram contabilizados pela CPT, 254 só no sul do Pará. Em abril de 99 já foram resgatados 185 peões só no Sul do Pará. Quando se sabe das dificuldades para se chegar à informação e à posterior dificuldade para montar uma operação de resgate, é permitido pensar que esses números não passam da ponta da icebergue.


As formas de escravização comportam habitualmente os seguintes elementos: aliciamento em região distante, pagamento antecipado dos gastos do peão (pensão, feira, transporte), transporte em condições péssimas, cadeia de intermediários desde o dono da pensão até os distintos gatos, condições de trabalho precárias e perigosas, coação por meios violentos, ameaças e cerceamento da liberdade, prática do endividamento reforçado pelo sistema da compra no barracão da fazenda ou da frente de trabalho. As empreitas mais habituais, nas regiões de fronteira agrícola são o desmatamento, a derrubada para abertura de fazenda ou pastos novos, a limpeza de juquira ou juquirão, além de obras específicas (ex.: linhão da Eletronorte a partir de Tucurui-PA). No interior dos Estados, embora muitas vezes no limite entre escravidão e trabalho super-explorado, há repetidos casos em carvoarias e serrarias (MA, MG, MS, MT).



2. Os desafios atuais da luta contra o trabalho escravo

 

Tivemos em 1997 uma experiência inovadora, realizada na Grande Região Norte, visando a articular as estratégias de trabalho a fim de prevenir e combater o trabalho escravo nos Estados de Maranhão, Tocantins, Pará e Mato Grosso: Campanha ‘De olho aberto para não virar escravo!". Essa Campanha partia da observação - de novo confirmada pelos casos flagrados de 1997 para cá no sul do Pará - de que Maranhão e Tocantins são regiões preferenciais de aliciamento, fornecedores de mão de obra, para as empreitas realizadas no Pará e Mato Grosso, em regiões cada vez mais distantes (ex.: região do alto Xingu). Apoiada em material didático especialmente realizado (material de sensibilização voltado para os trabalhadores sujeitos a contratação; material de orientação para monitores da Campanha, material de divulgação para opinião pública), a Campanha teve desdobramentos diferenciados conforme a região envolvida desde encontros de sensibilização e primeiras orientações, encontros de capacitação nas regiões de incidência de trabalho escravo até acompanhamento de operações de resgate e das pendências que delas decorrem (ações criminais e trabalhistas, orientação às vítimas, proteção a testemunhas e/ou vítimas).


Vale ressaltar que:

1. A forma como chegamos até as informações é sempre ‘por um fio’. Requer uma boa capilaridade por parte de uma rede consistente de agentes treinados e motivados, com presença nos bairros de cidades a forte concentração de peões (ex: sul do Maranhão, norte do Tocantins, sul do Pará, leste do Mato Grosso). Consciente de seus limites, a CPT procura ampliar o leque de atores envolvidos nesse trabalho de vigilância: grupos locais de direitos humanos, equipes pastorais, etc.

2. A denúncia é o passo essencial para correta apuração dos casos e realização do resgate das vítimas. A falta de compromisso por parte de várias autoridades locais – às vezes omissão, às vezes conivência – implica na absoluta necessidade de se ter encaminhamentos claramente definidos e confiáveis, junto ao Grupo Móvel de Fiscalização da SEFIT. 

3. Devido os laços de dependência/amizade que vem se tecendo entre os peões e seus gatos, a extrema mobilidade e a falta de alternativa de subsistência para essa categoria de trabalhadores cuja vida se confunde com a peonagem (peão do trecho), é muito difícil tirar grande proveito dos resgates realizados: a volta à mesma situação continua sendo a maior probabilidade. Conforme os casos, essa situação exige ações de emergência (socorro imediato às vítimas) e soluções mais duráveis, onde deve se discutir localmente as oportunidades de organização e de emprego. A CPT pode assumir papel incentivador para tais ações.

4. Devemos atentar ao fato que aos poucos, nas regiões objeto de fiscalização do Grupo Móvel, a tendência é de aparecer formas alternativas de trabalho escravo onde o cerceamento da liberdade não é mais caracterizado por uma vigilância armada: a dívida impagável por si só com a ajuda do isolamento geográfico, basta para submeter o peão e lhe impor as piores condições de trabalho. É preciso levar a fiscalização a encarar essas novas táticas. 

5. Impunidade: no acompanhamento às pendências penais, os processos criminais por trabalho escravo (art. 149 CP) são muitas vezes arquivados antes de chegarem ao julgamento e, às vezes, antes mesmo da denúncia ou da pronúncia, por razão de prescrição. Em 22/08/97 a Justiça Federal de Marabá comunicou a relação de 11 processos criminais ligados à prática do trabalho escravo (período de 80 a 92). Desse número só 3 processos estavam ainda em andamento sendo os demais arquivados ou até sem notícia. Tudo indica que os demais nunca chegarão ao julgamento por não se encontrar mais, depois de tanto tempo, nem as testemunhas nem os acusados, que são foragidos ou com pena prescrita. Por morosidade ou má vontade da Polícia Federal, inquéritos demoram anos antes de serem concluídos. È preciso acompanhar de maneira qualificada o andamento dos processos criminais de trabalho escravo no Ministério Público e na Justiça Federal. Na parte trabalhista, a situação é idêntica: as multas não são pagas, nem provavelmente cobradas. Sob pena de favorecer a recidiva no crime do trabalho escravo (já bastante evidente nos casos apurados), é preciso cobrar do Ministério do Trabalho a execução das sanções das infrações lavradas nas operações de fiscalização. O valor das multas, de qualquer maneira, são irrisórias por esses grandes fazendeiros e não tem efeito dissuasivo.


6. Os debates da sociedade organizada, tais como os realizados no Fórum Nacional contra a Violência no Campo e contra o Trabalho Escravo, são de primeira importância neste combate. Em 09/09/97, por exemplo, foi o Fórum quem pressionou o presidente do INCRA, Dr Milton Seligman, para desapropriar a fazenda Flor da Mata, no Sul do Pará (por motivo de trabalho escravo). Apesar de fortes reações por parte dos políticos (grupo do governador Siqueira Campos, Estado do Tocantins) ligados à empresa tocantinense Umuarama, dona da fazenda, os quais foram até o Ministro para tentar descaracterizar o trabalho do Grupo Móvel, da PF e da CPT-Xingu, a desapropriação ocorreu e foi implantado um projeto de assentamento de 400 famílias removidas da reserva indígena vizinha dos Kaiapó-Xicrín. Foi muito questionado e denunciado o fato que o proprietário da fazenda Flor da Mata recebeu do governo federal uma indenização de R$    2.500.000, enquanto ele tinha comprado a fazenda, 3 anos antes, pelo valor de R$    100.000. Por isso o Fórum esta articulando a preparação de um projeto de lei para que, em caso de trabalho escravo, a fazenda seja confiscada sem direito a nenhuma indenização. Foi também o Fórum quem acompanhou cuidadosamente o andamento do projeto de lei sobre o trabalho escravo, o qual foi votado pelo Congresso no fim de 98. O mesmo vale, a fortiori, dos demais espaços de âmbito internacional (OEA, ONU, OIT). Várias Representações contra o governo brasileiro por omissão na apuração de casos de trabalho escravo encontram se na Comissão Interamericana da OEA em Washington.

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

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