Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Artigo*

“O Alojamento era um barraco de lona, sem paredes, fogão, banheiro, pia, luz elétrica. Não tinha nada. Um fiscal vigiava a gente o tempo todo. Às 4h da manhã, ele colocava os holofotes do carro dentro do barracão. Todos os dias eu preparava o café da moçada. Se a gente não fizesse, não comia. Cansamos de andar até 20 quilômetros a pé para chegar ao trabalho, com chuva ou sem. O mato não era baixo como o ‘Meladinho’ tinha prometido. Era uma juquira alta, serviço para trator. Um dos trabalhadores fez a conta: cada um de nós estava ganhando R$0,75 por dia. Parávamos por volta do meio dia para comer. Era arroz com mandioca fria, sem gosto. Como a gente comia no tempo, a água misturava na marmita. Nem tinha apetite para comer aquilo ali. Trabalhávamos até anoitecer. Um dia, um temporal tomou o céu. Era uma chuva de raios. Eu e mais três roçávamos perto de uma cerca elétrica e decidimos retornar ao barraco, com medo. Eram 14h30. Mal entramos e o fiscal veio para cima. Não adiantou explicar, o fiscal obrigou a gente a voltar. Deu o pior. Um trovão caiu perto da gente e cada um caiu para um lado. Nem sei explicar o que senti. O fiscal fez a gente levantar e retomar o serviço.”

O depoimento[1] acima foi feito por Francisco das Chagas da Silva Lira, 38 anos, ex-trabalhador da Fazenda Brasil Verde, localizada na cidade de Sapucaia, Pará. Por tais condições de trabalho, o Brasil recebeu a primeira condenação pela manutenção de trabalhadores em condições análogas a de escravo, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em outubro de 2016. A narrativa atualmente exemplifica as hipóteses atuais de redução a condições análogas a de escravo, que são: condições degradantes, jornadas exaustivas, trabalho forçado e trabalho por servidão. A tutela jurídica que previne a ocorrência da escravidão contemporânea foca-se na liberdade e na dignidade. No relato de Francisco, as condições de alojamento, refeição, cuidados com hidratação, trabalho sob medo e ameaças em longas jornadas exemplificam a condição degradante e a jornada exaustiva. O valor do trabalho/dia, a dívida impagável com a migração do trabalhador até o local de trabalho e a força ostensiva dos fiscais representam o trabalho forçado.

O cotidiano dos trabalhadores da fazenda Brasil Verde, mesmo vivido em 2000, ainda representa a realidade de muitos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, desde o trabalho rural até ao nas grandes indústrias multinacionais têxteis. A verdade é tão cruel e dura que, para homenagear os Auditores Fiscais do Trabalho, Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados no dia 28 de janeiro de 2004, em fiscalização de trabalho escravo no Estado de Minais Gerias, nas fazendas de Unaí, unificou-se nacionalmente que o dia 28 de janeiro representa o compromisso nacional pelo combate ao trabalho escravo.

Ainda mais, neste ano de 2018, a luta pelo fim do trabalho escravo ganha importância pelos objetivos da Campanha da Fraternidade em abolir todos os tipos de violência, incluindo aqui a violência e o conflito no campo, com o tema “Fraternidade e superação da violência” e o lema “Vós sois todos irmãos”, sem falar nos 130 anos do fim da abolição da escravidão colonial brasileira. Portanto, é fundamental que todas as organizações de direitos humanos e movimentos sociais atuem na luta contra o trabalho escravo. Reforçar ações de prevenção à escravidão contemporânea junto aos trabalhadores/as mais vulnerabilizados/as e à sociedade é um caminho para alimentar o sonho de um Brasil sem escravidão.

 

[1] Depoimento completo e entrevista disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/05/1883708-ex-trabalhador-escravo-no-pa-relata-abuso-que-condenou-pais-no-exterior.shtml

 

* Flora Oliveira -  Mestra em Direito, professora da Faculdade Imaculada Conceição do Recife e da Faculdade Salesiana do Nordeste, advogada Trabalhista, pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo e colaboradora da CPT NE 2.

 

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