Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Um grupo de 831 trabalhadores indígenas foi resgatado de condições degradantes da fazenda e usina de cana-de-açúcar Debrasa, unidade da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA) em Brasilândia (MS), a 400 km da capital Campo Grande.

Fonte: Reporter Brasil

Realizada na última terça-feira (13), a operação de fiscalização coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) flagrou o descumprimento de leis trabalhistas por parte da Agrisul, que, assim como a CBAA, pertence ao grupo José Pessoa, um dos maiores e mais tradicionais do país no segmento sucroalcooleiro.

Beatriz Camargo e Maurício Hashizume

"O alojamento era de uma precariedade que causou espanto em toda a equipe", descreve a auditora fiscal do trabalho, Jacqueline Carrijo, que comandou o grupo móvel de fiscalização. Um grupo de 50 indígenas se amontoava em blocos retangulares de alvenaria (de 15 m x 6,8 m), semelhantes a uma cela de prisão. Os blocos menores (9,4 m x 2,8 m) abrigavam até 20 pessoas. A construção era antiga, as paredes estavam cobertas de mofo e os colchões eram sujos. Os blocos ficavam distantes cerca de 5 km da sede da usina, onde havia um outro alojamento dentro dos padrões exigidos por lei.

Quando os fiscais chegaram, o lixo estava esparramado pelo alojamento dos indígenas e o sanitário disponível, entupido e fétido, não apresentava condições mínimas de uso. O esgoto corria a céu aberto. Na ausência de armários, as roupas ficavam no chão. Também foram encontrados restos de comida no local, expostos no mesmo espaço em que circulavam gatos. O calor e a umidade dentro dos blocos, aliadas à concentração de insetos, dificultavam o descanso dos trabalhadores, que acordavam diariamente às 4h da manhã.

Também faltava água para o banho de todos. Segundo Jacqueline, os próprios empregadores chegaram a admitir que os alojamentos estavam condenados, mas mesmo assim continuaram utilizando o espaço. O valor de mercado da CBAA, presidida por João Pessoa de Queiroz Bisneto e formada por um total de sete usinas, é de US$ 500 milhões, segundo informações recentes de uma publicação especializada.

A alimentação dos indígenas também era muito precária. "Assim como na divisão dos alojamentos, verificamos muita diferença entre os refeitórios dos funcionários não-indígenas e o dos indígenas. Um deles era limpo e respeitava todas as normas, com mesas e cadeiras adequadas. Os indígenas, por sua vez, comiam sentados no chão. Havia clara discriminação, um verdadeiro apartheid [regime político fundado no racismo institucional que vigorou na África do Sul de 1948 até 1990]", descreve a coordenadora do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com ela, cerca de 200 funcionários da CBAA trabalhavam em situação bem mais favorável que os mais de mil, aí incluídos os 831 indígenas, registrados pela Agrisul.

As marmitas servidas aos indígenas não eram bem fechadas, e o cardápio era farto em carboidratos (muito arroz) e escasso em vitaminas (carne e legumes). A disponibilização de água potável durante o trabalho também se revelou precária. Muitos índios tiveram problema de vômitos e diarréia.

O transporte era realizado em seis ônibus totalmente precários. As caldeiras da usina foram interditadas, e não havia sistema de combate a incêndio. A poluição sonora na planta era acima do normal e o transporte do bagaço de cana-de-açúcar estava sendo realizado de modo inadequado, espalhando muito pó prejudicial à saúde pelos ares da planta industrial.

A inexistência de restrição à liberdade e de dívidas com o empregador, bem como o registro em carteira - os salários estavam atrasados, assim como o pagamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) -, contribuíram para classificar o quadro como de trabalho degradante. Conforme o relato dos integrantes do grupo móvel, não foram encontradas armas de fogo nem foram consumadas ameaças de natureza física ou psicológica de restrição do direito de ir e vir. O grupo móvel contou com a participação do procurador do trabalho e vice-coordenador nacional de Combate ao Trabalho Escravo, Jonas Ratier Moreno, e com agentes da Polícia Federal (PF).

Um dos gerentes do grupo José Pessoa vem acompanhando a fiscalização, declara a fiscal Jacqueline. Ela conta que não houve resistência nem restrições por parte dos representantes das empresas Agrisul e CBAA - que inclusive são signatárias do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (confira lista). Algumas providências já estão sendo tomadas, como a troca do ônibus de transporte, a disponibilização de banheiros químicos para os trabalhadores e manutenção das caldeiras da usina.

Posição da empresa

Repórter Brasil entrou em contato com a CBAA em Brasilândia (MS) por telefone no final da tarde desta terça-feira (20) com o intuito de registrar a posição da companhia com relação à fiscalização do grupo móvel. Uma funcionária da empresa solicitou que a reportagem entrasse em contato com a assessoria de imprensa do grupo, que fica na unidade de São José do Rio Preto, interior de São Paulo. A tentativa do contato foi feita, mas ninguém atendeu ao chamado telefônico nas instalações da filial paulista.

Nesta quarta-feira (21), o próprio presidente José Pessoa de Queiroz Bisneto conversou por telefone com a reportagem. Para ele, a situação da usina Debrasa "não é bem como está sendo colocada". "Os alojamentos têm mais de 20 anos e já passaram por outras fiscalizações anteriormente, inclusive do próprio grupo móvel de Brasília. E nunca houve uma reação como agora. Eles estavam sujos por causa do uso durante toda a safra", justifica o empresário.

José Pessoa ressalta que a fiscalização aportou justamente nos últimos 15 dias da safra deste ano. "Se tivessem visto os alojamentos no começo da safra, a avaliação seria outra. Nem sempre conseguimos fazer a manutenção quando eles estão cheios", sublinha. O quadro encontrado pelo grupo móvel, completa, também está relacionado com os hábitos dos trabalhadores indígenas, bem diferentes dos empregados não-indígenas.

A diferença de tratamento entre trabalhadores indígenas e não-indígenas na Debrasa, atestada pelo grupo móvel quando da fiscalização, foi refutada pelo usineiro. "A empresa tem uma só cozinha. Quem trabalha na industria faz suas refeições no refeitório porque estão todos concentrados. É a mesma comida que vai para o campo [para os indígenas]. Não é possível instalar refeitórios nas frentes. Nunca existiu diferenciação", responde. Ele também negou a existência de alojamentos-padrões apenas para os trabalhadores não-indígenas. "São todos iguais, da mesma qualidade".

A Debrasa, continua José Pessoa, é uma das poucas usinas da região que oferece emprego aos indígenas. "Em 1998, em função da modificação da legislação, acabamos com a contratação desse tipo de mão-de-obra. Mecanizamos tudo naquela ocasião. Diante do apelo das autoridades, voltamos a contratar índios justamente por causa da nossa preocupação social. Estamos `pagando o pato` por causa disso", adiciona.

Do conjunto de problemas identificados, o empresário assume que as irregularidades no transporte poderiam ter sido solucionadas anteriormente. "Não contrataremos mais ninguém. Vamos adquirir ônibus próprios". Para a próxima safra, que começa em abril de 2008, ele promete aumentar a mecanização, contratar menos indígenas e destruir os alojamentos antigos para reconstruir um espaço maior com uma planta mais moderna.

Ele não admite negligência no acompanhamento da situação dos alojamentos. Promete ainda guardar imagens e convidar representantes do Ministério Público do Trabalho para conferir as instalações oferecidas aos funcionários antes da safra do ano que vem começar. "Nunca quisemos explorar ninguém. Ficamos muito tristes com esse episódio todo".

O pagamento dos dividendos trabalhistas aos centenas de índios provenientes de cinco diferentes núcleos populacionais do Mato Grosso do Sul terá início nesta quarta-feira (21) e está previsto para se estender até a próxima segunda-feira (26), quando o grupo móvel deve deixar o local.

 

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