Comissão Pastoral da Terra Nordeste II


Confira a carta escrita por João do Vale, integrante da CPT, para o Padre Tiago Thorlby:

Querido Tiago, 

Te escrevo com a convicção que irás me ler. Como tudo é tempo e o tempo é passagem, as palavras que saem de mim chegarão até ti. Estarmos, momentaneamente, em lugares diferentes é só um detalhe. Antes de nascermos estávamos juntos em meio às estrelas, por milhões, bilhões e incontáveis eras. Depois desse passeio por aqui voltaremos a nos encontrar entre as estrelas por milhões, bilhões e outras incontáveis eras.

Você nunca foi dotado do dom de passar despercebido. Na verdade, antes mesmo de estar contigo por tantas vezes, seja em um café da manhã na cozinha da Comissão Pastoral da Terra ou em alguma área de conflito, já sabia da tua existência por essas bandas. As suas histórias, ou melhor, as histórias que contavam sobre ti, me enchiam de curiosidade, sobretudo porque eram sobre coragem - algumas delas, inclusive, um tanto cômicas. Ao final, o contador do causo dizia: você vai conhecer Tiago. E conheci. Alto, camisa de botão, calça folgada, boina e olhos cor de oceano. Caderninho e caneta no bolso ou nas mãos. Parecia ter feito um pacto com o tempo, de usá-lo o máximo que fosse possível. 

Dizia que inferno não existia, mas que deveria haver um lugar – que você ainda não sabia o nome - para receber os senhores de engenho de ontem e de hoje, porque para o céu eles não iam. Um padre que não acreditava em inferno e que ao mesmo tempo pleiteava a não entrada de latifundiários no céu só poderia ser alguém muito interessante. 

Gostava de astronomia e também de astrologia. Não apertava a mão de latifundiário, ouvia Beatles e traduzia a Bíblia dos textos originais, pois não confiava nas traduções que chegaram até nós. Chegou ao Brasil com uma mala cheia de livros de teologia europeia, que não demorou muito para queimá-los em uma fogueira feita no quintal.

Sabe, Tiago, estava lendo um livro escrito por Francisco Julião, o advogado rebelde das Ligas Camponesas. Nele, que escreve enquanto estava preso pela ditadura, fala à sua filha recém-nascida, Isabela, que ainda não havia conhecido. Diz Julião: “apaixonei-me desde jovem pela causa mais nobre que há nesse país – a libertação dos camponeses”. Lembrei-me de você, Tiago, que também foi vítima do mesmo arrebatamento. Um apaixonado, ao ponto de doar toda a sua vida por isso. África, Amazônia, periferia de São Paulo, zona canavieira do Nordeste. Amor preferencial pelos pobres. Amor por tua Marilu, com toda a breguice que a nós é permitida: tua alma gêmea. De sonho, de rebeldia e de tudo. A única pessoa entre todos os habitantes da terra que conseguia conter as suas teimosias. 

As tuas causas eram para você mais importantes que sua vida. Conseguisse contar em quantos conflitos por terra se envolveu? Quantas ocupações apoiou? Quantos camponeses defendeu? Quando ficava de pé, em momentos de tensão, parecia que uma montanha se levantava ou um trovão que estrondava o céu. Olhos firmes, braço levantado e o teu sotaque, que nunca te abandonou, mas que não impedia que suas palavras fossem entendidas pelos camponeses. Talvez, também, porque você os entendia profundamente. É engraçado que quando se fala com o coração as barreiras que dificultam o entendimento não resistem.  

Fosse um migrante. Nasceu na Escócia e escolheu o Brasil para viver. Quando Canudos prosperava e os poderosos resolveram destruí-la, muita gente que não era de lá foi até a comunidade para defendê-la. Isso acontece também em outros momentos e lugares. Assim você chegou.

O que me fez te admirar, Tiago, foi seu exemplo. E o que me fez aproximar de ti foi seu prazer em ouvir os mais jovens, sua curiosidade de uma criança que já estava nessa guerra do terceiro mundo a meio século mas queria continuar aprendendo: “conte mais, mano, conte mais, mano”. Sempre achei bonito o fato de chamar todo mundo de “mano” e “mana”. Quer dizer irmão, irmã, não é? Tu que tanto gostava de estar no meio dos jovens. Não sei se para incendiá-los ou para se deixar incendiar. Ou as duas coisas.

Preciso te dizer que ainda não consegui encontrar um melhor xingamento para pessoas covardes que o utilizado por você: bunda mole! Também não sei explicar qual a relação de uma bunda mole com a covardia na luta, mas que é a melhor expressão que até agora encontrei, é sim. 

Sabe, Tiago, por aqui as coisas não andam bem. O capitalismo tem transformado o mundo em uma churrasqueira, as redes sociais têm aumentado nosso ego e diminuído nossa luta, e Cristo, o camponês, que tu e eu seguimos e que nos dá sentido e esperança, continua sendo crucificado nos altares em nome do poder e do dinheiro. Porém, mano, as crianças continuam nascendo. Agora a pouco, vi, em mutirão, um grupo de camponeses soltando sementes sobre o chão. Como que, em nome da vida que teima, desafiando o mal e o medo. Lembrei de uma provocação que vez ou outra nos fazia: “Será se nós estamos a altura da fé desse povo?”. E as árvores das cidades, Tiago. Espremidas entre prédios, apertadas pelo asfalto, ainda são abrigo para os pássaros e sombra para os namorados. Já reparasse quanta rebeldia há nas árvores das cidades? 

“Prova de amor maior não há, que doar a vida pelo irmão...” cantavam centenas de pessoas no enterro do Padre Henrique, assassinado em Recife pela ditadura militar. A ti dedico essa canção, Padre Tiago, amigo e profeta, essa mistura de professor e poeta. Padre da Comissão Pastoral da Terra, essa, que segundo você “deveria ter morrido logo na maternidade mortífera da ditadura, mas sobreviveu, cresceu, floresceu... pois o sangue dos mártires é a semente da luta”. Tiago, guerrilheiro da revolução do terceiro mundo.

Padre Tiago, amor e luta.

 

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