Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

No âmbito das lutas sociais, o ano de 2007 foi marcado por mobilizações que abrangeram vários temas que envolvem a construção de um projeto popular de Brasil. Na pauta: Reforma Agrária, reestatização da Companhia Vale do Rio Doce, transposição do Rio São Francisco, imperialismo estadunidense etc. A fim de aprofundar a leitura sobre o ano que passou e analisar as perspectivas das lutas sociais, a Revista Sem Terra apresenta na sua nova edição entrevista com Roberto Baggio, integrante da direção nacional do MST pelo estado do Paraná.

O último ano também ficará marcado na história do MST por causa da realização do seu 5º Congresso Nacional, em junho, quando mais de 17 mil militantes reafirmaram o compromisso de seguir ajudando na organização do povo, para que lute por seus direitos e contra a desigualdade e as injustiças sociais.

Para ele, assim como ocorreu em 2007, o capital financeiro representado pelas transnacionais permanece como principal inimigo da Reforma Agrária. Baggio diz que, com a hegemonia desse capital por meio do agronegócio, o número de assentamentos foi “irrisório”. Na entrevista, ele fala ainda sobre violência no campo, reestruturação do Incra, lutas para 2008 e analisa o cenário político latino-americano. Confira a seguir.

Beatriz Pasqualino e Gisele Barbieri

Revista Sem Terra: Em 2007 os Sem Terra realizaram diversas ações contra a atuação das transnacionais no país, como a Syngenta e a Cargill. Por que essa ofensiva do MST?

Hoje há toda uma ofensiva do capital internacional sobre a agricultura, que neste período histórico tem se transformado em um espaço a mais da acumulação do grande capital, tanto em escala internacional como nacional. O objetivo dele continua sendo, por meio da agricultura, transformar tudo em mercadoria, por isso que temos toda esta ofensiva com a apropriação privada da terra, da água, da agroenergia, além do crédito, sementes e alimentos de forma geral. O Brasil cumpre um papel decisivo e importante nesta acumulação, porque reúne um conjunto de condições favoráveis para a expansão capitalista na agricultura, com a quantidade de solos planos, a fertilidade das planícies, ou seja, um conjunto de condições naturais que favorecem expansão e acumulação, além da exploração desenfreada da nossa natureza. Além do mais, o Estado brasileiro também estimula as políticas gerais do agronegócio, dando as garantias para os investimentos do capital e flexibilizando a legislação que vem atender aos interesses desta burguesia imperialista, que tenta transformar a agricultura em um dos pilares desta acumulação. Então, estamos vivendo um pouco desta grande aliança de classe, que de um lado tem o capital internacional presente por meio das transnacionais, que querem implantar seu projeto de dominação da agricultura com o pacote tecnológico, dos insumos e toda a matriz. Ao mesmo tempo essa aliança se interage com a burguesia nacional que se associa de forma dependente com capital externo, disponibilizando suas terras e reorganizando a parte produtiva da exploração do trabalho e da mão-de-obra.

Como você avalia a atuação da chamada grande imprensa nesta conjuntura?

Nesse contexto também, do ponto de vista mais psicológico, a grande imprensa, que está interligada e a serviço do grande capital, cumpre essa missão: massageando a sociedade no sentido de difundir o projeto do agronegócio como uma alternativa viável. Então faz toda esta propaganda para ganhar a sociedade brasileira com o retorno deste projeto. Tudo isto representa uma ameaça do ponto de vista de que este não é um projeto que se sustente. Ele representa uma ameaça à biodiversidade, ao conjunto de várias formas de vida existentes e ameaça os camponeses de forma geral. Isto porque este modelo visa asfixiar e derrotar, de forma gradativa, eliminando as comunidades camponesas. Representa uma ameaça à existência do planeta. Por essas razões, a luta da Reforma Agrária hoje tem como inimigo principal as grandes empresas transnacionais. Elas representam o projeto político e econômico que visa dominar a agricultura. Neste modelo que estão intensificando, tentando consolidar, não há mais espaço para implantar um projeto de Reforma Agrária. Eles querem derrotar qualquer alternativa que enfrente estas questões. Nesse modelo maior, a Reforma Agrária estaria marginalizada, fora, sem espaço. A luta do MST neste momento tem este sentido. É uma luta contra este projeto hegemônico e, ao mesmo tempo, de afirmação da necessidade de construir um projeto alternativo de realização da agricultura, que preserve a soberania sobre nosso território, sobre a produção de alimentos, as sementes do ponto de vista cultural das comunidades camponesas. Um projeto alternativo de Reforma Agrária que contemple as necessidades centrais da nação e do povo brasileiro e que enfrente o projeto externo do grande capital internacional.

Então essas lutas contra as transnacionais continuam em 2008?

Toda a análise que está se fazendo vai incorporando este elemento novo, de que hoje o capital internacional personificado nas empresas transnacionais é o inimigo central. Há um processo também de aprendizagem, acúmulo e amadurecimento para identificar onde estão os obstáculos centrais da luta pela terra e pela Reforma Agrária. A análise comum feita pelos movimentos do campo que compõem a Via Campesina é de que hoje o embate central é contra o inimigo central, que é o capital externo. De forma geral, a Via Campesina vem amadurecendo no entendimento deste processo e hoje, de forma internacional, os camponeses identificam o mesmo problema com as transnacionais e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Estes dois são os grandes inimigos de todos os camponeses em todos os cantos do mundo. Em torno disto, estes movimentos estão organizando um calendário de lutas de alcance internacional para deflagrar todo este embate contra esse capital que ameaça o planeta e, principalmente, as comunidades camponesas. Os movimentos acreditam que é possível e necessário construir urgentemente um modelo alternativo para que a nossa economia volte a atender os interesses centrais da nossa sociedade, que são: abastecimento interno, preservação da agricultura e a preservação da nossa soberania e biodiversidade. A biodiversidade brasileira não pode ser objeto de especulação capitalista de algumas empresas transnacionais, que utilizam isto como mercadoria para intensificar sua acumulação capitalista. Nós temos que garantir que o conjunto dos recursos naturais disponíveis em nosso território esteja de forma total a serviço da comunidade e que sua exploração e uso se dêem de forma sustentável e equilibrada, atendendo os interesses do povo brasileiro.

O capital financeiro, além de ameaçar os trabalhadores rurais com o modelo do agronegócio, também os ameaça de morte, como é o caso do assassinato do Keno, em outubro. Qual a avaliação do MST sobre a violência no campo em 2007?

A essência do modelo capitalista é a exploração. Então, a intensificação da exploração humana se visualiza principalmente nas grandes regiões ou em grandes fazendas, que são classificadas como fazendas modelos do agronegócio. O agronegócio brasileiro é o grande responsável pela violência, pela contratação de jagunços, milícias armadas, assassinatos de trabalhadores, ameaças à biodiversidade, pressão sobre o Poder Judiciário, destruição da natureza, pelos níveis de pobreza, ou seja, este modelo carrega todas estas conseqüências, que são parte de sua existência, da exploração e apropriação de forma ilimitada dos recursos naturais. Eles não se preocupam com o custo e com os efeitos sociais e ambientais que isto tem para o povo brasileiro. O agronegócio carrega esta marca da violência, do trabalho escravo, da desagregação social e da fome. Ultimamente, o padrão de violência que o capital internacional impõe através de transnacionais, como a Syngenta, como no caso do assassinato do Keno, remonta e recoloca junto com o agronegócio uma essência de violência, de abuso e de barbárie que achávamos que estava superada no ponto de vista histórico. Porém, hoje ele volta com mais força, porque neste momento o capital tem interesses de se apropriar das terras que ainda restam em nosso país, além de se apossar da biodiversidade. Por isso, ele é mais violento e mais bárbaro. E demonstrou isso no caso da Syngenta, levando até as últimas conseqüências, se utilizando de uma ação de violência bárbara e extrema contra as comunidades camponesas.

O ano de 2007 foi o primeiro do governo Lula em que não tivemos uma meta estabelecida para realizar a Reforma Agrária, a exemplo do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), no primeiro mandato. Qual o balanço que o MST faz sobre a Reforma Agrária no último ano? Houve avanços na política de assentamentos, prestação de assistência técnica, promoção da educação do campo?

De forma geral, a Reforma Agrária continua lenta e praticamente paralisada. Temos mais de 150 mil famílias acampadas na beira das estradas. O governo federal não tem nenhum projeto de Reforma Agrária. O sentido de um projeto de Reforma Agrária é mexer na estrutura da propriedade da terra, desconcentrar, distribuir e democratizar a terra, criando um conjunto de instrumentos públicos e de políticas agrícolas para reformar grandes regiões e organizar a economia, desenvolvendo a parte educacional, cultural, recuperando a sociabilidade. Enfim, isto significa organizar as grandes regiões e estabelecer pólos de desenvolvimento econômico, social e cultural, com agroindústrias, nesta perspectiva de ir incorporando e integrando milhões de camponeses que dependeriam da terra e de um projeto de Reforma Agrária. Nós não identificamos nem no governo Lula, nem no seu programa, embriões desta perspectiva. Pelo contrário, os marcos atuais do modelo de Reforma Agrária deste governo são assentamentos pontuais e localizados. Não podemos dizer que isto é Reforma Agrária. Nos últimos anos, e em 2007 ─ que também é o grande referencial ─, o número de assentamentos foi irrisório. Até mesmo a política de estruturação produtiva, da qual o governo faz muita propaganda, considerando a qualidade da Reforma Agrária, está muito limitada. Os pequenos avanços que ocorreram e estão sendo implementados representam muito mais a iniciativa de pressão e mobilização social, de capacidade política e organizativa dos movimentos sociais do que vontade do próprio governo. O governo muitas vezes não dispõe nem dos recursos necessários para constituir estas políticas públicas.

Na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em 2005, o MST colocava como peça fundamental para avançar na questão agrária a reestruturação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Como está o Incra hoje?

O Incra continua sendo um órgão amorfo, do ponto de vista da organização da Reforma Agrária. Está muito aquém das necessidades atuais e do compromisso do governo Lula de reestruturar e fortalecer esta instituição. Este compromisso está abandonado, para não dizer esquecido pelo governo federal. Em qualquer projeto de Reforma Agrária massivo, que se tem como objetivo democratizar o acesso da propriedade e a terra no Brasil, é preciso bons instrumentos públicos do Poder Executivo para criar esta dinâmica de assentamentos, desapropriações, etc. Neste aspecto, o Incra necessitaria cumprir uma função central de agilidade, de rapidez, de dinamizar toda uma estrutura pública em prol da Reforma Agrária. A situação atual do Incra é penosa. Há uma carência estrutural de funcionários enorme. Grande parte dos quadros que trabalham no Incra são funcionários antigos, que não têm compreensão política da velocidade da Reforma Agrária, ou não têm afinidade com o tema ou são contra este instrumento, além das contratações que são reduzidas.

Algumas mobilizações realizadas no ano passado extrapolaram a questão da Reforma Agrária, abrangendo mais especificamente questões do projeto popular para o Brasil, como o Plebiscito da Vale, as ações contra a transposição do Rio São Francisco e os próprios debates do V Congresso do MST. A partir disso, podemos dizer que houve acúmulo e avanços na luta dos trabalhadores?

Eu avalio que nós estamos em processo de organização e fortalecimento, construindo um calendário de lutas e acumulando forças. Desde 2003-2004, estamos num processo constante para acertar táticas e definir estratégias mais claras, e também fazendo um ensaio de um conjunto de bandeiras de lutas que possam mobilizar os camponeses. Isto fortalece o conjunto das forças sociais e, a cada ano que passa, essas forças e o processo vai crescendo e amadurecendo. Em 2007 este aspecto foi positivo, porque os movimentos sociais incorporaram e gastaram energia na construção de um projeto de natureza maior, como o plebiscito e outras campanhas. Isto revela um amadurecimento político do movimento social, que passa a entender que as verdadeiras mudanças dependem de capacidade política, de mobilização e pressão, rompendo com as estruturas centrais do capital. Há um alargamento da plataforma política que extrapola as questões agrárias e fundiárias e passa, de forma geral, a aglutinar e a envolver os diversos setores da sociedade. De certa forma, é um conjunto de ensaio que está amadurecendo e, na medida em que vai ampliando a mobilização social, a pressão, vai se preparando para batalhas decisivas no futuro que irão romper com o modelo atual e construir um modelo alternativo, com a perspectiva de ir resolvendo os problemas estruturais que atingem a população brasileira.

Como é de costume, os índices de crescimento econômico continuam com muito destaque na pauta da chamada grande imprensa. Qual a avaliação o MST faz da política econômica adotada nos últimos anos?

A lógica do modelo econômico atual tem em seus pilares centrais a lógica do neoliberalismo: é a produção para exportar. Dos anos 90 para cá, o grande setor da economia que está acumulando de forma rápida é o capital financeiro, que hoje é hegemônico e organiza a economia brasileira. Ele está se apropriando da fatia central da mais-valia arrecadada pelo conjunto da sociedade brasileira. É óbvio que este modelo não serve para a população brasileira, é um modelo em que um conjunto de bancos só acumula. A nossa preocupação é como organizamos um modelo econômico, em que a sociedade brasileira se beneficie de seus resultados. Hoje o benefício central é para “meia dúzia” de bancos que sugam nossas riquezas e levam tudo para fora do país. Este modelo está em contradição com o que pensamos para a construção de um projeto nacional, soberano e solidário; um projeto que atenda as demandas do conjunto dos trabalhadores, as necessidades do país, as questões sociais de acesso à saúde e à educação e que preserve nossa cultura.

Com relação à conjuntura internacional, pode-se dizer que nos últimos anos a América Latina “roubou” a cena, inclusive nos noticiários. Como o MST analisa os governos progressistas e as lutas sociais na América Latina? É possível apostar em uma perspectiva de unidade?

A América Latina nos últimos 10,15 anos vive um processo de ascensão da luta social e política. E todo esse grau de mobilização social no continente latino-americano segue no sentido de promover mudanças institucionais por meio de processos eleitorais no conjunto dos países do continente latino-americano. Há um encontro das vertentes da luta social com a luta institucional por meio dos processos eleitorais. Esse processo em países como a Venezuela, Bolívia, Equador tem sintonia com um processo maior de mudança, em que o movimento social tem desencadeado e pleiteado mudanças que vão ganhando força e espaço no conjunto da sociedade continental. Nas perspectivas de mudanças mais estruturais esta é uma novidade política importante para o Continente. Está ocorrendo uma “fermentação política”, há uma elevação da consciência política das massas que vão lutando e se transformando num sujeito deste processo político que está em andamento. O movimento social latino-americano também está envolvido e acompanhando este processo todo. Talvez a grande novidade política neste contexto é de construirmos no continente latino-americano um grande conselho dos movimentos sociais como projeto de integração latino-americana que preserve a autodeterminação e a soberania política dos povos em cada país, com essa vertente, e incluindo o conteúdo de que a verdadeira integração se dá nos marcos, não da mercadoria e sim da solidariedade política entre os povos. Nesta perspectiva, a Alternativa Bolivariana para os Povos das Américas (Alba) passa a ser a nossa nova tarefa política para o movimento social latino-americano e pode ser o grande projeto de integração e de soberania política. Ela precisa ser incorporada à agenda política dos movimentos sociais que devem transformar isto em uma tarefa política de construção do novo período histórico. Na medida em que o continente latino americano retoma o ascenso da luta social e da mobilização, o projeto da Alba pode ser o grande projeto da integração e de construção da grande pátria de unidade latino-americano sonhada por pensadores como Che Guevara, Martí, Simón Bolívar e Paulo Freire. Esta é a grande tarefa que está colocada neste contexto histórico e que tem de ser construída para se tornar o grande projeto de emancipação latino-americana.

Revista Sem Terra, 11/02/08.

 

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