Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

O texto “Conhecimento, poder e o futuro da Caatinga: por um crédito social de carbono que valorize a vida e o território”, do pesquisador Aldrin Martins Pérez, do Instituto Nacional do Semiárido (INSA), é uma reflexão potente sobre o papel do conhecimento, da ciência e das comunidades do Semiárido na construção de um modelo de desenvolvimento que valorize a vida e os territórios.

Como o próprio autor descreve, trata-se de uma contribuição para alimentar as ideias e os temas que tanto nos movem — e que podem auxiliar debates e reflexões urgentes sobre justiça socioambiental, soberania dos povos e reciprocidade ecológica.

Pensar o fazer cotidiano é, para a CPT, um caminho de escuta e ação. É somar a sabedoria camponesa à ciência, dar corpo ao “sentipensar”, cultivar solidariedade e promover vida em abundância.

O fazer da Pastoral da Terra é também um terreno fértil de reflexão e ação, onde proteger os territórios e toda a vida que neles habita é parte da missão. Como escreve Aldrin, “se o medo é a colonialidade do carbono, como descolonizá-lo — transformando-o de mercadoria em símbolo de reciprocidade ecológica e de moeda do capital em moeda do Bem Viver?”

 A seguir, leia o texto na íntegra:

 

Conhecimento, poder e o futuro da Caatinga: por um crédito social de carbono que valorize a vida e o território

Por Aldrin M. Pérez Marín — Instituto Nacional do Semiárido (INSA)

 

Abrindo nossa conversa 

Entre o perigo de agir sem cuidado e o risco de não agir por medo, o Semiárido enfrenta um dilema histórico. Como transformar o carbono símbolo da crise em símbolo de solidariedade e soberania? Este texto propõe uma virada de chave: o crédito social de carbono como ferramenta de justiça socioambiental, construída a partir das comunidades e regulada pelo Estado.

Conhecimento é poder e também responsabilidade 

Conhecer é poder. E, como todo poder, o conhecimento pode cuidar ou ferir. Tudo depende de como o usamos. Trabalhar com o saber é mais do que acumular dados ou produzir relatórios: é um ato de responsabilidade. Um conhecimento vivo deve servir para melhorar a vida das pessoas e da natureza.

Mas o conhecimento, quando mal-usado, também pode se tornar arma. Ele pode abrir caminhos ou reforçar desigualdades. É por isso que, diante das transformações que o Semiárido vive, precisamos nos perguntar:

Como usar o conhecimento para libertar, e não para submeter-se?; Como transformar a gestão dos recursos naturais em gestão de relações entre ciência, território e vida?

Essa é a essência da convivência com o Semiárido: o conhecimento só tem sentido se estiver a serviço da vida.

O perigo de não agir 

Nos últimos anos, temos visto o avanço de empresas que se apresentam como "verdes", mas seguem velhas lógicas de exploração. Aqui mesmo, na região, já há casos de empresas arrendando terras de Caatinga por valores irrisórios, prometendo lucros futuros com créditos de carbono. Enquanto isso, as comunidades, guardiãs históricas da Caatinga, continuam sem voz e sem renda.

Isso acontece porque, muitas vezes, ficamos presos entre dois perigos: agir sem cuidado ou não agir por medo.

Quando não agimos, deixamos o campo livre para as forças que dominam o mercado, a mídia e o território. Foi assim com a energia solar e eólica—dois potenciais imensos do Semiárido que acabaram concentrados nas mãos de poucos, gerando novas formas de desigualdade e pressão sobre as comunidades.

O silêncio também é uma escolha. E, nesse caso, é uma escolha que beneficia quem já tem poder. Como diz o ditado, "quem cala, consente".

Daí a provocação:

Se o problema do mercado de carbono está na lógica mercantil, e não no reconhecimento do valor dos serviços ecossistêmicos, o que impede que os povos e comunidades do Semiárido se reapropriem do carbono como bem comum, criando um crédito social de carbono baseado na solidariedade e na redistribuição do valor ecológico? 

O desafio de reinventar o carbono 

Diante desse cenário, não basta criticar o mercado de carbono. É preciso reinventá-lo. O problema não está em reconhecer o valor dos serviços que a natureza presta - o problema está em transformar isso em mercadoria controlada por atravessadores.

Por que não pensar o carbono como bem comum, e não como produto? Por que não criar um crédito social de carbono, que garanta que o recurso vá direto para as comunidades que mantêm a Caatinga viva?

Essa proposta não é utopia. É uma forma concreta de devolver valor ao cuidado com o território.

Um crédito social de carbono pode ser regulado pelo Estado, mas gerido com participação popular, com certificação comunitária e governança compartilhada. É transformar o carbono símbolo da crise em símbolo de solidariedade e soberania.

E aqui cabe outra pergunta necessária:

Ao rejeitar o carbono em bloco, não corremos o risco de entregar esse instrumento e seus recursos aos mesmos atores que queremos confrontar? 

O Semiárido que pensa e age 

Hoje, já se fala em construir três instrumentos fundamentais para esse caminho:

  1. Um decreto presidencial criando o mercado regulado e participativo de carbono;
  2. A regulamentação que garanta transparência, controle social e autonomia comunitária;
  3. Uma instrução normativa com o passo a passo para que o dinheiro chegue a quem cuida da terra.

Essas ideias estão sendo gestadas junto com a plataforma "Floresta em Pé, Renda Justa", que busca unir ciência, território e vida - fortalecendo quem protege, planta e conserva.

Mas um desafio se impõe: 

Se o crédito social de carbono pode transformar dependência em soberania, permitindo que as comunidades autogestionem os recursos da conservação da Caatinga, como garantir autonomia sem abrir mão da valorização econômica do cuidado com o território? 

O valor de retribuir à terra 

O Semiárido sempre ensinou que resistir é conviver.

A Caatinga não precisa ser salva — precisa ser reconhecida como mestra.

E talvez o crédito social de carbono seja apenas o nome moderno de um gesto antigo: retribuir à terra o valor da vida que ela nos dá.

No fim das contas, não se trata de carbono, mas de justiça social, ecológica e climática. E essa justiça só nascerá se o conhecimento que produzimos for usado com ética, coragem e compromisso com o bem comum.

Por isso, o desafio final é este:

Se o medo é a colonialidade do carbono, como descolonizá-lo, transformando-o de mercadoria em símbolo de reciprocidade ecológica e de moeda do capital em moeda do Bem Viver?

 

Novembro de 2025, ano de COP30.

 

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