Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

\"\"O Estatuto da Igualdade Racial só estará completo com garantia de direitos territoriais quilombolas

Falsos dilemas têm orientado a discussão sobre o Estatuto da Igualdade Racial e a temática territorial quilombola. A afirmação do Ministro Édson Santos sobre a auto-aplicabilidade do art. 68 do ADCT da Constituição para justificar a retirada do texto que trata dos territórios quilombolas no Estatuto da Igualdade Racial é vazia de conteúdo jurídico

fragiliza politicamente a defesa da realização dos direitos territoriais do povo quilombola e contribui com aqueles que não querem a titulação dos territórios.


Para que se tenha no Estatuto da Igualdade Racial (EIR) um marco legal que contribua para erradicar desigualdades socioraciais é imprescindível contemplar a temática territorial quilombola. Esse posicionamento é fundamental para transformar uma política pública de governo em uma política pública de Estado, promovendo maior segurança jurídica ao povo quilombola no acesso ao território e a outros direitos fundamentais.

Lutar pela inclusão de normas no estatuto não reforça o equivocado e mal intencionado entendimento dos ruralistas de que o art. 68 do ADCT da Constituição não é auto-aplicável. Conquistar outros marcos normativos que ajudem a viabilizar o acesso ao território para as comunidades quilombolas faz parte do processo de mobilização em defesa de direitos e reforça a necessidade de titulação dos territórios.

A Constituição Federal garante que as normas definidoras de direitos humanos têm aplicabilidade imediata, ou seja, na definição do jurista José Afonso da Silva, são auto-aplicáveis. O art. 68 do ADCT versa sobre o direito humano de acesso ao território, mais precisamente de acesso ao território que historicamente fora negado aos quilombolas, sendo por esse motivo auto-aplicável.

Assim o artigo de que se fala tem aplicabilidade imediata pelo fato de ser um dispositivo que garante um direito humano. Mas também porque objetivamente contém todos os elementos que um dispositivo legal necessita ter para ser aplicado.

Podemos afirmar com segurança que o preceito constitucional, por si só, já é capaz de surtir efeitos jurídicos práticos positivos à titulação, pois indica “o objeto de direito (a propriedade definitiva das comunidades dos quilombos), seu sujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunidades dos quilombos), a condição (a ocupação tradicional das terras), o dever correlato (reconhecimento da propriedade e emissão dos títulos respectivos) e o sujeito passivo ou devedor ( o Estado, Poder Público)”

A Constituição é clara para estabelecer quando se faz necessária lei complementar. Isto se vê nos arts. 5º, incisos XXIV (procedimento para desapropriação), XXIX (direitos aos autores de inventos industriais), XXXII (defesa do consumidor), XLII (crime de prática de racismo) ou mesmo art. 7º, incisos IV (salário mínimo) e XIX (licença-paternidade). No texto que trata dos direitos territoriais quilombolas não há essa indicação expressa.

Dessa forma é fácil perceber que o art. 68 do ADCT é auto-aplicável e que defender a inclusão de outras normas que ajudem a viabilizar na prática a titulação não influencia na aplicabilidade imediata do dispositivo.

O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL PODE DAR MAIOR SEGURANÇA PARA AS TITULAÇÕES DOS TERRITÓRIOS

É necessário destacar que o fato de um dispositivo constitucional ser auto-aplicável não descarta á necessidade de outras normas para que o direito aconteça na prática.

Auto-aplicabilidade não se confunde com Auto-realização. A auto-aplicabilidade indica que a lei tem vigência, validade, eficácia e produz efeitos legais desde sua edição. Infelizmente a realização desse direito, na prática, não acontece automaticamente. Para tanto basta ver que mais de vinte anos de existência da Constituição não foram suficientes para a aplicação do direito territorial quilombola.

Até 2001 não havia nenhuma norma que pudesse indicar ao poder público como o Estado deveria proceder para fazer a titulação. Por isso era muito difícil a titulação, já que não havia indicação de como esta deveria ser feita. Mesmo sem esse procedimento o Poder Judiciário foi acionado em 1994 e reconheceu, dez anos depois, aos quilombolas de Ivaporanduva (SP), que o Governo Federal deveria fazer a titulação do território daquela comunidade conforme os estudos apresentados no processo. (Veja decisão da justiça).

Sabendo da dificuldade de realizar a titulação dos territórios sem que o Estado pudesse dar os caminhos a serem percorridos pela administração pública, no ano 2000, associações de quilombolas do Maranhão ingressaram com um processo no Supremo Tribunal Federal para forçar o governo a fazer essas regras sobre o andamento do processo de titulação. Essa ação, somada a outras pressões do povo quilombola fez com que o ex-Presidente Fernando Henrique expedisse o Decreto Federal 3.912/2001.

Contudo esse decreto do ex-Presidente Fernando Henrique tornou quase impossível a titulação. As regras deste decreto, na verdade, acabavam com as chances de titulação. Para que os quilombolas tivessem seu território titulado tinham que provar estar efetivamente ocupando a terra há mais de 100 anos.

Essa afirmação é substancialmente comprovada quando comparados os decretos presidenciais n° 3.912/2001 e 4887/03, dos Presidentes Fernando Henrique e Lula, respectivamente. O Primeiro decreto expunha conceitos e determinava um procedimento para expedição do título que praticamente inviabilizava a titulação dos territórios quilombolas e impedia, pela via do processo administrativo, a realização da integralidade do direito previsto na constituição. Este sim inconstitucional porque fere a possibilidade de realização do disposto no art. 68 do ADCT da Constituição.

Já o Decreto 4887/03, ao contrário do outro decreto já revogado, dá viabilidade prática à realização do direito sem inovar juridicamente e sem criar outras obrigações.

A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, com todos os dispositivos que tratam da titulação dos territórios quilombolas, é uma clara possibilidade de consolidar as bases do procedimento administrativo previsto no decreto 4887/03. A afirmação dessas razões em lei contribuirá para minorar o ataque dos ruralistas a sua efetivação seja minorado. Com essa lei aprovada o próximo presidente que vier a ser eleito não poderá tornar a titulação impossível como fez o Ex-Presidente Fernando Henrique

O art. 68 do ADCT da Constituição Federal é auto-aplicável e não há obrigação de lei federal para lhe dar aplicabilidade. No entendo, entendemos que o Decreto Federal 4887/2003, apesar de plenamente válido e eficaz, é um instrumento normativo frágil para garantir a realização prática de direitos territoriais. Nesse sentido, para garantir a continuidade da realização da política pública, através de um instrumento normativo mais rígido, é que se defende a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial com dispositivos que garantam a continuidade do andamento dos procedimentos administrativos de titulação.

 

 

Fonte: Terra de Direitos

 

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