Semana passada, o Governo Federal anunciou a assinatura do “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar”. De acordo com o Governo, a iniciativa visa garantir “melhores práticas” nas relações de trabalho no monocultivo. Em entrevista a Comissão Pastoral da Terra, o advogado Bruno Ribeiro Paiva – que há 18 anos atua em defesa dos trabalhadores canavieiros e com entidades que os acompanham como a CPT e a Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultura de PE) – faz criticas ao acordo e questiona a sua eficácia para modificar as relações de trabalho na produção da cana.
“Não enxergo nada nos termos do acordo e na forma como foi construído que me dê qualquer esperança de que vá contribuir para mudar esse quadro de escravidão e/ou de trabalho degradante que cresce, ano a ano, nos canaviais brasileiros.” Afirma Bruno Ribeiro.
Entrevista com Bruno Ribeiro Em geral, praticamente definindo um padrão, encontrei em São Paulo o centro mais desenvolvido do setor sucroalcooleiro brasileiro, uma situação muito distante que uma certificação pudesse atestar como detendo níveis satisfatórios de qualidade de trabalho, de vida e de preservação ambiental. E se em São Paulo o caminho ainda é bastante longo, no Nordeste e no Centro-Oeste, nas condições atuais, ainda é mais fictício e irreal se pretender uma certificação de boas práticas de trabalho”, complementa Bruno.
CPT - Porque foi criado o acordo e como ele foi construído? Qual foi a posição e o papel do governo em sua elaboração?
Bruno Ribeiro - Historicamente a atividade sucroalcooleira tem sido geradora de profundos desrespeitos aos direitos humanos e de graves danos ao meio ambiente. Nos últimos anos, com a expansão indiscriminada do etanol e dos canaviais, com a ampliação da super-exploração dos trabalhadores e do trabalho análogo ao escravo, a sociedade brasileira e diversas forças em todo o mundo têm denunciado esses fatos e exigido mudanças. Entendo que este acordo foi uma tentativa de responder a essas denúncias e reivindicações. Mas é uma resposta tímida e até acanhada, sem o poder de gerar mudanças significativas nas condições de trabalho e de vida dos canavieiros e, muito menos, na questão ambiental, pois esta não foi tratada no acordo. O acordo foi construído em negociações tripartites, ocorridas no último ano, envolvendo representações sindicais dos trabalhadores rurais e representações das usinas, com a mediação da Secretaria Geral da Presidência da República. Então, o Governo Federal agiu como articulador e mediador dos entendimentos. Entretanto, diante da gravidade dos impactos sócio-ambientais acumulados em razão da atividade canavieira, o Estado tem um papel muito maior do que simplesmente mediar. Precisa agir de uma forma sistêmica e integrada como foi recomendado ao Presidente Lula pelo CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) em documento produzido no ano passado. Precisa, por exemplo, regulamentar; zonear; fiscalizar; induzir desenvolvimento com equidade; condicionar o acesso aos recursos públicos e a metas sociais e ambientais; legislar; punir infratores; cobrar débitos fiscais e tributários. Sem que o poder público exerça os seus múltiplos papéis no setor sucroalcooleiro, até a sua função de mediar fica prejudicada.
CPT - O que este acordo tem a acrescentar ao que já existe na legislação trabalhista e nos dissídios?
BR - Acho que muito pouco. Torço para estar enganado, mas não enxergo mudanças para os canavieiros em decorrência de um acordo que não prevê metas; não estabelece mecanismos de controle e monitoramento; não fixa sanções; e, sobretudo, deixa de fora muitas questões vitais para o trabalhador rural da cana, como por exemplo: a questão da alimentação no local do trabalho; a questão salarial; a questão da jornada diária compatível com a saúde humana, que hoje é baseada na remuneração por produção e fixa limites claros ao corte diário; do contrato temporário de trabalho; do grave problema habitacional do canavieiro e canavieira; do seguro-desemprego; da criação de oportunidades que não o tornem obrigado a migrar para fugir da fome e gerar alguma renda para sua família; da qualificação; e da melhoria da fiscalização pelas superintendências regionais do trabalho.
CPT - Por que o acordo é de adesão voluntária e não obrigatória?
BR - As entidades sindicais mais atuantes em defesa dos canavieiros sempre defenderam a realização de um acordo coletivo de abrangência nacional, com cláusulas regulando com uniformidade o trabalho da cana em todo o País. Ou seja, abrangente e de natureza obrigatória. No início desta mesa de negociações, a CUT e a Contag fizeram a defesa pública dessas suas posições. As empresas, por sua vez, especialmente as representadas pela Única, não aceitavam sequer discutir um acordo de trabalho coletivo e nacional. Creio que a atuação do Governo como simples mediador terminou contribuindo para que, pelo menos nesse momento, prevalecesse essa prévia condição colocada pelas empresas, seja quanto a um conteúdo mais restrito do acordo, com várias questões ficando de fora, seja quanto ao seu caráter de livre adesão.
CPT - Quais as consequências de o acordo não ser obrigatório ?
BR - A consequência de não ser obrigatório é bastante evidente, além de não prever grandes impactos positivos, esse acordo tem uma enorme tendência de não ter qualquer eficácia concreta. Ora, esse setor tem um conhecido perfil histórico de um grande e continuado descumprimento de normas obrigatórias, como são as leis trabalhistas e ambientais, bem como as convenções coletivas. Não há como apostar que no cumprimento do que é de “livre adesão”, ou seja, cumprir um acordo ao qual adere espontaneamente e que igualmente pode se desfiliar a qualquer momento, ou simplesmente descumprir sem qualquer sanção ou punição prevista! Somente se evitará isso se o poder público agir com mais firmeza e posicionamento claro, em defesa do respeito aos pontos abordados no acordo e a outros pontos estratégicos que dele não constaram, os quais já integram a legislação, as normas regulamentadoras e diversas convenções coletivas. Se a “livre adesão” fosse um critério suficiente e confiável para enfrentar e resolver esses problemas, as empresas sucroalcooleiras não precisariam celebrar acordos tripartites para assegurar a dignidade de vida e de trabalho dos canavieiros que empregam, até hoje, em condições muitas vezes precárias e desumanas.
CPT - O presidente e os usineiros falam em certificação. Existe possibilidade de etanol limpo, certificado, num setor que historicamente acumula um grande passivo trabalhista e ambiental, dependente do estado e devedor de impostos?
BR - A certificação é uma questão estratégica e fundamental. É uma ferramenta de controle da sociedade e dos trabalhadores. Mas essa boa oportunidade corre um preocupante risco de ser desperdiçada. Alguns falam da certificação como um mero passaporte para ingresso nos mercados internacionais, sem maior compromisso com a qualidade de vida das pessoas e do meio ambiente. Muitos outros se referem à certificação como uma necessidade fundamental para se verificar e monitorar, de forma independente e confiável, a sustentabilidade ambiental, social e econômica de um produto e do setor que o produz. Nas várias recomendações que fez ao Presidente Lula, o CDES adotou este último sentido e, confio, que é com esse mesmo conteúdo e objetivo que o presidente menciona a certificação. No ano passado, andamos 1.500 quilômetros nos canaviais paulistas, ouvindo canavieiros, entrando nas suas casas, adentrando nos seus locais de trabalho, escutando setores organizados da sociedade que acompanham a sua vida e a sua luta bastante difícil, como tão bem sabemos. Em geral, praticamente definindo um padrão, encontrei em São Paulo o centro mais desenvolvido do setor sucroalcooleiro brasileiro, uma situação muito distante que uma certificação pudesse atestar como detendo níveis satisfatórios de qualidade de trabalho, de vida e de preservação ambiental. E se em São Paulo o caminho ainda é bastante longo, no Nordeste e no Centro-Oeste, nas condições atuais, ainda é mais fictício e irreal se pretender uma certificação de boas práticas, de trabalho decente e de segurança ambiental.
CPT - Com que condições os/as trabalhadores/as migrantes deixam suas famílias para tentar ganhar a vida nos canaviais de outras regiões?
BR - As piores condições possíveis. No trajeto, no trabalho, na habitação e na qualidade de vida. Quase todos declaram que apenas se afastam de suas famílias para ir aos canaviais paulistas porque não possuem alternativas de trabalho e renda em suas regiões. A maioria declara que, ainda por cima, o ganho maior em São Paulo é ilusório porque o alto custo de vida naquele estado, sobretudo em alimentação e moradia, captura boa parte do salário que o migrante sonhava em remeter para a família.
CPT - O número de trabalhadores libertados pelo grupo móvel tem aumentado nos últimos anos nos canaviais à medida que a cana vai se expandindo. Este acordo vai contribuir para mudar esta situação?
BR - Não enxergo nada nos termos do acordo e na forma como foi construído que me dê qualquer esperança de que vá contribuir para mudar esse quadro de escravidão e/ou de trabalho degradante que cresce, ano a ano, nos canaviais brasileiros. Pelo contrário, os indicativos de realidade aumentam a preocupação quanto ao agravamento da situação, pois o setor sucroalcooleiro brasileiro foi um dos primeiros a ser atingido pelos efeitos da crise mundial. Desse modo, com boa parte das empresas em crise e descapitalizadas há uma forte tendência empresarial a reduzir a quantidade de trabalhadores contratados e exigir uma tarefa maior daqueles que contratar. Assim, são imensos os riscos de aumentar a jornada exaustiva e a superexploração. Afinal, esta foi a lógica implantada pelas usinas nos últimos anos, cada vez menos trabalhadores, apesar da grande expansão da atividade, para plantar e cortar cada vez mais cana. Esse roteiro empresarial somente pode ser construído com o sacrifício da saúde e das condições de vida dos canavieiros.
CPT - De que forma a aprovação da PEC do Trabalho Escravo pode contribuir para diminuir a exploração dos trabalhadores?
BR - É uma providência fundamental, pois inibirá a prática inaceitável da escravidão sob várias formas como vem sendo praticada no país, até extingui-la rapidamente. Mas a aprovação da PEC exige uma forte tomada de posição da sociedade, pois o que temos visto recentemente no Congresso Nacional não nos autoriza a ser muito otimistas quanto a uma aprovação se não houver mobilização social.
CPT - Que acordo e ações governamentais seriam necessárias para o açúcar e o etanol serem produzidos sem violar direitos nem destruir a natureza? O Brasil, na conjuntura atual, tem condições de garantir esta produção?
BR - Para que a produção do etanol deixe de violar os direitos dos cidadãos que trabalham e/ou moram nas proximidades das usinas, bem como ao meio ambiente, precisa-se mudar o modelo como o etanol é produzido no País, assim como a prática histórica por parte da maioria das empresas brasileiras. Mas para realizar essas mudanças, antes tem de se mudar as atitudes e a ação do Estado brasileiro, nos seus vários níveis. Não é fácil, como o sabem os trabalhadores e as suas organizações. Mas é indispensável continuar tentando. O perfil do setor sucroalcooleiro brasileiro, e a sua baixa sustentabilidade, tem uma origem direta na ação do Estado. O Estado tem sido definidor do perfil desse setor desde que Portugal trouxe a cana para o Brasil, retirou a terra dos índios para plantá-la, fez o negro escravo para cultivá-la nos engenhos e definiu o perfil fundiário brasileiro segundo as conveniências dessa lavoura. Essa atitude orientou o IAA do passado e, de certa forma, prevalece com o BNDES de hoje que, a cada ano, injeta dezenas de bilhões de reais, oriundos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), para financiar a expansão da atividade sucroalcooleira, sem estabelecer os mínimos critérios sociais e ambientais para o bilionário aporte de recursos públicos recolhidos dos trabalhadores. Ou seja, o setor sempre foi hegemônico no controle das políticas públicas e na prioridade dos investimentos públicos. Algumas mudanças ocorreram nos últimos anos, mas com uma intensidade ainda pequena diante do passivo social e ambiental gerado pela atividade canavieira. O papel dos combustíveis renováveis é fundamental diante da crise ambiental e da escassez do petróleo. O diálogo com os diversos setores, sobretudo os de natureza tripartite, também tem a sua importância estratégica. No entanto, para que o diálogo seja eficaz e para que o etanol venha a ser produzido de modo sustentável, o poder público precisa ter uma posição diferenciada, do lado do cidadão e do meio-ambiente, induzindo novos modelos mais descentralizados de produção de bioenergia, estimulando a pequena produção, garantindo a segurança alimentar e definindo novos padrões na produção pelos setores de produtores convencionais. O plantio e a industrialização da cana sempre foram os alvos principais das políticas públicas. Só teremos sustentabilidade, quando os sujeitos das políticas públicas concretamente forem os cidadãos que trabalham nos canaviais e o meio-ambiente nas áreas canavieiras e quando os que plantam cana tiverem de respeitar esses objetivos centrais.
Setor de comunicação da CPT NE2