Até o momento, fim da intermediação de mão-de-obra é o ponto principal do termo de compromisso negociado entre patrões e empregados, com ajuda do governo. Para Unica, sistema de alimentação é caro e logística é complicada
Por Maurício Reimberg*
O "Compromisso Nacional", como está sendo chamado o protocolo de intenções elaborado por representantes dos usineiros, trabalhadores e governo, foi coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República (SG/PR). Desde o início de maio, o texto aguarda aval do presidente, que dará a palavra final sobre os pontos de consenso que saíram das reuniões do grupo. Existem ao todo cerca de 500 mil trabalhadores no corte de cana no país.
O principal ponto anunciado até agora - são cerca de 50 itens de consenso no total - é o fim da intermediação de mão-de-obra para produção de cana ou etanol, numa tentativa de eliminar a figura do "gato", que faz o aliciamento para empreitadas no meio rural. "Isso [a intermediação] é um caos para a vida dos trabalhadores. Já valeria o compromisso só por este item", comemora Elio Neves, presidente da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), que participou da mesa de diálogo.
O governo federal se comprometeu a alfabetizar e aumentar a escolaridade dos trabalhadores, além de qualificá-los para eventual reinserção produtiva. Ainda não há meta estipulada para essa requalificação nem previsão de investimento inicial. "O objetivo principal é que as boas práticas sejam disseminadas e possam estar presentes em todas as empresas brasileiras do setor", declarou Antonio Lambertucci, ministro interino da Secretaria-Geral da Presidência, durante a abertura do Ethanol Summit 2009, encontro internacional sobre o tema promovido pelo setor empresarial que ocorre esta semana na capital paulista, nesta segunda-feira (1º).
"Os cortadores são uma categoria esquecida desde o período do Brasil colonial. A primeira conquista do acordo é que a nação está tendo esse reconhecimento", afirma Elio Neves, presidente da Feraesp. Segundo ele, o avanço agora vai depender da mobilização da categoria e da conjuntura política do país. "Para ganhar o planeta, o etanol brasileiro precisa ter responsabilidade social. A legislação trabalhista ainda não chegou ao campo".
Uma comissão nacional tripartite - governo, empresas e trabalhadores - está sendo formada para implementar e acompanhar os resultados do "pacto". Pelo lado dos trabalhadores, participam a Feraesp e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Os empresários foram representados pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e pelo Fórum Nacional Sucroalcooleiro. Todas essas entidades também integraram a mesa de diálogo organizada pela Secretaria-Geral da Presidência.
Limites
A despeito do discurso oficial, o alcance e os efeitos imediatos da iniciativa do governo permanecem incertos. A adesão dos produtores de cana será voluntária e não existe previsão de punição para aqueles que não assinarem. O acordo deve estabelecer prazos para cumprimento das exigências, levando em conta a necessidade de ajuste de cada empresa. Também entrará em vigor uma auditoria externa e um mecanismo de certificação. "Ainda temos que trazer os fornecedores para o acordo", admite Marcos Jank, presidente da Unica, uma das maiores entidades representativas do setor agroenergético.
Além dessas incertezas, alguns pontos considerados importantes pelos trabalhadores não foram aceitos pelas entidades patronais e ficaram de fora do protocolo. As usinas se recusaram, por exemplo, a fornecer alimentação e um piso salarial nacional para a categoria. "Como conceber um setor produtivo que se diz capaz de abastecer os tanques dos automóveis do mundo inteiro e não abastece os estômagos dos empregados?", questiona Elio Neves.
À Repórter Brasil, o presidente da Unica Marcos Jank tentou explicar o veto à proposta de oferecer comida aos cortadores. "O sistema de alimentação é muito caro e tem uma logística complicadíssima", afirma. O empresário nega ainda que a recusa seja decorrente de um possível temor dos usineiros em relação à fiscalização da vigilância sanitária nas frentes de trabalho.
Os sindicatos também criticam a ausência de um piso salarial nacional. "Atualmente chega a um ponto vergonhoso de um mesmo grupo econômico ter três ou quatro pisos salariais", denuncia Elio Neves. Jank argumenta que o setor é "extremamente heterogêneo" nas várias regiões do país, o que dificultaria a fixação de um piso único para todo o país.
Ilegal
Para Marcus Barberino, juiz federal do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que está à frente de um curso sobre trabalho escravo voltado para agentes do Judiciário, o compromisso entre governo, usineiros e trabalhadores representa, em linhas gerais, um grande "chamamento do Estado para que o setor se legalize nas bases de funcionamento do capitalismo brasileiro". "O setor está pressionado pelas sentenças judiciais", afirma o magistrado.
Em abril de 2007, o Grupo Cosan, maior conglomerado sucroalcooleiro do mundo, firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Pelo acordo, as usinas da empresa devem reduzir os contratos terceirizados de bóias-frias do corte da cana até 2010, quando deverão registrar diretamente 100% dos trabalhadores. "Como a Cosan começou a cumprir, vai arrastando as demais empresas", diz Marcus.
Para o juiz, a contratação direta tende a melhorar as condições de trabalho e facilitar a fiscalização da vigilância sanitária, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT). "A chamada terceirização à brasileira, com os `gatos´ e outros intermediários de gente, é função da degradação do meio ambiente do trabalho e do trabalho forçado", argumenta. Segundo ele, o grau de formalização da cana no país é de 70%.
O próprio setor vive atualmente um processo de centralização "brutal", realça Marcus. Para o juiz do Trabalho, o grande problema não é a qualidade da lei nem o grau de idoneidade do Poder Judiciário, mas sim a capacidade de "resistência" do cumprimento da lei pelo capital. "É um aspecto próprio da correlação de forças da sociedade brasileira", define.
Por produção
O protocolo de intenções também cita, de forma genérica, a necessidade de uma maior "transparência" na aferição da cana cortada, mas defende a continuidade do pagamento por produção. O pacto estabelece a possibilidade de uma complementação de renda quando a meta de produção não for atingida. O pagamento por produção é considerado uma das causas das doenças decorrentes do processo de intensificação do trabalho.
O professor Francisco Alves, do departamento de engenharia de produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisa o setor sucroalcooleiro desde a década de 1980. Ele avalia que é impossível garantir trabalho decente se o cortador tem que "se matar de trabalhar, em alguns casos literalmente". "O trabalhador não sabe quanto vai ganhar, o cálculo é feito de forma complexa, envolve estatística e conversão do valor do metro para tonelada". Segundo ele, após 12 anos cortando cana o trabalhador já fica incapacitado.
Francisco defende o pagamento por jornada como um mecanismo mais justo de remuneração, com uma rotação de tarefas na lavoura. Geralmente um único cortador é responsável pelo corte, limpeza e carregamento da cana. "Isso pode ser feito em rodízio", afirma o professor. Ele ressalta ainda que é necessário aumentar a aplicação da Norma Regulamentadora (NR) 31, que dispõe sobre a segurança e a saúde do trabalhador na atividade rural.
Segundo o pesquisador da UFSCar, a reforma agrária ocupa papel central para criar alternativas de emprego para os cortadores. "O que resolve é a reforma agrária, no caso dos trabalhadores que migram das Regiões Norte e Nordeste para o corte da cana no Sudeste e Centro-Oeste. Se o governo der terra para eles plantarem, eles não precisaram migrar para cortar cana".